Há música que mexe com o meu sistema nervoso. No mau sentido, note-se. O Pop em geral e os anos 80 em particular, por exemplo. Claro que, como em qualquer regra, há excepções e já dei comigo a dançar e a cantar muito êxito digno daquelas coletâneas que saiam por altura do Natal. Porém, o mais provável é sentir os ouvidos a sangrar aos primeiros acordes de alguns clássicos da década dos enchumaços e do néon. Não sei bem explicar, mas há qualquer coisa nos sintetizadores ou na batida repetitiva ou nos solos de guitarra ou nos saxofones ou nisso tudo junto, que me faz revirar os olhos e desejar ter um aparelho auditivo que pudesse desligar. Acontece muito nos táxis.
Não julguem que sou uma snob da música alternativa ou que sou muito entendida na matéria. Nada disso. Adoro música, oiço muita música desde miúda e, graças ao meu pai, cresci a ouvir de tudo. Com oito anos tanto cantarolava músicas do Caetano Veloso e do Chico Buarque, como êxitos dos Beatles e, claro, da Madonna, do Michael Jackson e de outros ídolos Pop da altura. Tenho várias playlists no Spotify e acreditem que são todas muito ecléticas e baseadas em artistas bastante mainstream. O que não encontrarão por lá são bandas queridas por muitos (desculpem) como Men at Work, Genesis, A-ha, Erasure, Journey, Supertramp, Pet-shop Boys, Marillion, Dire Straits, UB40 ou Frankie Goes to Hollywood (se bem que o nome desta banda é muito bom). E podia enumerar mais umas, só que já me está a dar uma certa urticária e temo ficar com as músicas na cabeça só por nomear os seus títulos (pesadelo).
Sei que tenho vários leitores que vão ficar chocados e talvez um pouco magoados, mas na minha opinião, no que à música diz respeito, os anos 80 tiveram algumas coisas muito boas e demasiadas coisas muito más. O que faz com que me seja difícil compreender a moda dos remixes com êxitos dessa altura e (igualmente mau) com a dance music dos anos 90. Na rádio ouço cada vez mais músicas recentes com refrãos ou batidas da época e, nas minhas parcas saídas à noite, tenho ouvido coisas como The Rhythm of the Night ou Show me Love o que me transporta, por momentos, para discoteca d’Os Franceses em 1994 (referência barreirense, desculpem). E se há quem possa achar que isso é bom, viajar no tempo, relembrar a infância e a adolescência através da música, para mim não é, visto que, já naquela altura, me era penoso ouvir e ficava estupefacta com os cenários e indumentárias apresentados nos respectivos telediscos. Enfim, gostos não se discutem, mas se é para isto, não me convidem.
Ao longo dos doze anos desde que saiu o meu primeiro livro, tenho recebido várias mensagens de pessoas que gostariam de publicar uma obra mas não sabem por onde começar. Tenho respondido a todas elas com o carinho de quem se lembra bem desses tempos de ignorância acerca do mercado da publicação. Mas porque, por vezes, se torna cansativo repetir a mesma história, mesmo que seja a pessoas diferentes, decidi escrever os passos todos, para futuros interessados. Um guia informal para publicar um livro.
1º passo EDITAR
Não há nada pior do que uma história mal escrita ou mal contada. Bem sei que, quando escrevemos, achamos que estamos a ser claros e, na verdade, estamos tão embrenhados na história e nas personagens que criámos, que podemos esquecer de dar contexto ao leitor. Por isso, antes de dar o nosso livro a ler seja a quem for, devemos imprimi-lo e relê-lo com muita calma, tentando detectar gralhas, imprecisões e corrigir sem medo o que tiver de ser corrigido (o que inclui deitar fora parágrafos inteiros se necessários for). Convém também usar o corrector ortográfico, porque um livro com erros normalmente vai directamente para o lixo.
2º passo LEITOR BETA
Todo o escritor tem de ter um (ou mais) leitor beta, isto é, aquela pessoa de confiança, que não tem medo de nos dizer as verdades. Deve ser alguém que leia muito e que saiba fundamentar as suas opiniões. Devemos ouvir essa pessoa com atenção e humildade, porque as observações que fizer e os erros que detectar podem ser os mesmos que um editor encontrará.
3º passo CORRIGIR
Sem medo de reescrever capítulos inteiros, sem medo de matar uma personagem secundária que não está ali a fazer nada, a correcção deve ser implacável. Agora sim, o manuscrito (ainda se diz assim, se bem que já ninguém escreva à mão) está pronto para ser avaliado.
4º passo INVESTIGAR
«Mas enviar para quem? Há tantas editoras!» Sim, por isso, devemos entrar numa livraria e procurar livros que sejam do género daquele que acabámos de escrever. Ou autores cujo estilo se assemelhe de alguma forma ao nosso. Temos de tomar nota da chancela e procurar o nome do editor, o qual, normalmente, se encontra na ficha técnica. Convém ter várias chancelas e editores a quem enviar porque, como já devem saber, raramente se consegue abrir uma porta à primeira. Muitas editoras têm nos seus sites na secção de contactos emails próprios para onde se devem enviar os manuscritos.
5º passo ENVIAR
Agora que já temos uma lista de editoras, respectivos emails ou moradas, devemos escrever um breve texto de apresentação, do género «Olá, sou a Filipa, e escrevi este livro que penso ser dentro do que vocês procuram na (nome da editora). Faz lembrar o livro X ou o autor Y e conta a história de (resumo em duas linhas no máximo). Junto envio a sinopse e as primeiras 20 páginas para vossa avaliação. Aguardo a vossa resposta. Com os melhores cumprimentos, XXX». E é isto. Curto e conciso, porque as pessoas que vão ler estas mensagens recebem dezenas delas por semana e não gostam de perder tempo.
Não é preciso enviar o livro todo. Se a editora estiver interessada, marca uma reunião. Ah, e podem enviar para todas ao mesmo tempo. A probabilidade de termos várias editoras a querer publicar o nosso livro ao mesmo tempo é remota, mas se acontecer até pode servir para nos dar vantagem na negociação do futuro contrato.
Também não precisam de se preocupar com a possibilidade de alguém vos roubar a ideia. Isso só acontece nos filmes. As editoras (tradicionais e estabelecidas) são empresas sérias.
6º passo ESPERAR
Devemos contar com, pelo menos, três meses de espera por uma reposta, que pode mesmo nunca chegar. A minha dica é marcar no calendário três meses da data de envio e, nessa altura, enviar um email a perguntar se já conseguiram chegar ao nosso livro. No caso de haver uma editora interessada, mas que era a nossa última escolha, podemos aproveitar para pressionar a nossa editora preferencial a dizer qualquer coisa como «tenho uma editora interessada, mas gostaria mesmo muito de publicar convosco, pelo que venho perguntar se já tiveram oportunidade de ler a amostra que vos enviei.».
Bem sei que é frustrante e irritante ter um livro escrito e pronto para conquistar o mundo e ninguém nos ligar nenhuma. Já estive nesse lugar. Mas por favor, não caiam no erro de dar o vosso livro a uma editora não-tradicional, isto é, qualquer empresa (nem se pode chamar editora) que vos peça dinheiro para publicar o vosso livro. Nenhuma editora a sério pede dinheiro a um autor, pelo contrário, por vezes paga-lhe um adiantamento na hora de assinar o contrato. No meu primeiro livro estive reunida com uma dessas empresas e quase me deixei enganar. Eles conseguem ser bastante persuasivos para quem não tem qualquer experiência. Porém, não se esqueçam de que, quando se publica nessas empresas, dificilmente se consegue dar o salto para as editoras tradicionais e a nossa credibilidade fica para sempre beliscada.
OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Lá porque gostamos muito de escrever, não significa que possamos vir a ser escritores. É preciso ter talento, sim, mas também uma boa dose de sorte. Sorte de a pessoa que recebeu o manuscrito o ler com carinho e passá-lo ao editor certo; sorte de aquela chancela estar à procura de livros do género do nosso; sorte de o editor querer dar a cara por um autor totalmente desconhecido.
Um escritor tem de ser paciente (ou não estaria vários meses de volta de um mesmo texto), mas sobretudo resiliente. Conseguir publicar o primeiro livro pode parecer-nos um feito decisivo, o prenúncio de uma carreira fulgurante, mas, na verdade, é só mais um livro nas dezenas de livros que saem para a rua a cada mês. O mercado é difícil, pequeno e há autores que publicaram um livro e não conseguem publicar o segundo. Porque as editoras procuram talento, é certo, mas também procuram fazer dinheiro. Se um autor não vende, põe-se de lado e dá-se atenção ao próximo. É cruel, é injusto, mas assim também é a vida.
Quem não estiver preparado para a rejeição e para anos a lutar contra a maré, mais vale nem sequer começar este caminho. Que continue a escrever por prazer, partilhando os seus escritos num blog, retirando alegria da escrita. Costumo usar muito a metáfora do futebol. Há milhares de miúdos que adoram jogar futebol, jogam muito bem e se empenham muito nas escolinhas, sonhando vir a ser jogadores profissionais. Mas só alguns irão para a formação dos clubes, menos ainda chegarão a jogar na Primeira Liga e pouquíssimos irão um dia parar à Liga dos Campeões. Os outros vão continuar por aí, nos campos, jardins e recreios, a jogar por puro amor e diversão, até os joelhos aguentarem. Nunca serão jogadores de futebol profissionais, mas jogarão sempre futebol com alegria.
Espero ter ajudado. Se tiverem mais dúvidas coloquem aqui na caixa dos comentários e eu responderei actualizando este post.
É com enorme orgulho que vos dou a conhecer um grupo recém-criado de escritoras portuguesas contemporâneas. Quando iniciei os contactos para nos juntarmos, achei que íamos ser umas dez, mas em pouco mais de um mês já éramos trinta. Nos nossos encontros mensais e conversas por WhatsApp descobri escritoras incríveis, livros que desconhecia e que merecem todo o destaque, géneros literários e estilos de escrita tão diversos, que seria um crime não partilhar com o mundo.
Os objectivos do grupo são muito simples:
entreajudarmo-nos nas questões práticas e nas dúvidas existenciais de quem escreve;
celebrar e divulgar as conquistas de cada uma;
levar as nossas vozes a cada vez mais leitores;
lutar por mais visibilidade nos meios de comunicação e literários;
desconstruir o conceito de literatura feminina, porque a Literatura é só uma e não tem género.
Através de uma newsletter, que podem subscrever AQUI, vamos partilhar os nossos eventos, lançamentos, textos, entrevistas e o que mais considerarmos importante para quem nos lê, enquanto prosseguimos com os nossos encontros mensais, ecos de uma verdadeira sororidade.
Por enquanto somos estas, mas em breve seremos muitas mais.
Hoje a minha filha deixou-me mais orgulhosa do que se tivesse ganhado uma medalha de ouro nos jogos olímpicos. Quase verti uma lágrima ao ouvir as suas palavras de profunda indignação por algo que aconteceu na sala de aula. E mais ainda quando me disse que se ia recusar a fazer o trabalho que a professora pediu.
Passo a explicar. A minha filha anda no 3º ano e, como é habitual nesta altura, a professora propôs que se fizesse uma lembrancinha para oferecer às mamãs no Dia da Mãe. Tal como em todas as outras turmas do seu ano, a lembrancinha seria um livro de receitas. Foi aí que a minha nova heroína feminista se impôs. Um livro de receitas? Mas que raio de presente é esse? Porque é que os pais receberam um Jornal, em que as notícias eram os grandes feitos e qualidades de cada um, e as mães recebem um presente que as manda para a cozinha? Isso é discriminação, disse ela, exaltada.
Minha querida Carlota, orgulho de sua mãe, fico muito feliz por ver que tu, com apenas 9 anos, já compreendes uma mensagem que nós feministas andamos há décadas a tentar passar, ao contrário das professoras do colégio que frequentas, que continuam a perpetuar estereótipos datados dos quais já nos devíamos ter libertado. Porque não um livro de receitas para o pai e um jornal para as mães?
Há quatro anos, escrevi um texto elucidativo sobre a importância de educar as crianças para a igualdade e sobre o impacto que as palavras e exemplos dos adultos têm nestes cérebros em formação. «Eu posso ensinar aos meus filhos tudo sobre feminismo e igualdade, mas se quando saem de casa, a sociedade lhes diz constantemente o contrário, fica mais difícil.» , escrevi então. Sim, fica mais difícil, mas não é impossível, como a Carlota acaba de provar.
Que o nosso presidente está constantemente envolvido em polémicas, já toda a gente sabe. Fala de mais, gosta de opinar sobre tudo, mesmo quando não lhe pediram a opinião, mete-se no que deve e no que não deve, como deixar que as suas convicções religiosas influenciem as suas decisões esquecendo que Portugal é um estado laico, enfim, temos visto de tudo um pouco, do bom e do mau.
Mas esta última de dar a a Grande Cruz da Ordem do Infante D.Henrique à Primeira-Dama brasileira, é que eu não estava à espera. Esta condecoração serve para distinguir «quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no País e no estrangeiro, assim como serviços na expansão da cultura portuguesa ou para conhecimento de Portugal, da sua História e dos seus valores.»
Segundo li no Observador, esta mesma condecoração «já tinha sido atribuída no passado, por outros Presidentes da República, a várias outras primeiras-damas de países lusófonos, incluindo a atual primeira-dama angolana, Ana Dias Lourenço, a antiga primeira-dama brasileira Dulce Figueiredo (mulher do último presidente da ditadura militar brasileira), a antiga primeira-dama cabo-verdiana Lígia Fonseca ou até a rainha Sofia de Espanha.» Mas não é por isso que deixa de ser chocante.
Que serviço é que a Excelentíssima Janja Lula da Silva prestou a Portugal nos três meses desde que o marido tomou posse? Para além de ser a mulher do presidente brasileiro, o que fez pela cultura portuguesa ou o conhecimento de Portugal?
Estamos perante, mais uma vez, um homem a agraciar alguém apenas por ser «a mulher de», o que acaba por ser insultuoso para o género feminino em geral e para os anteriormente condecorados por feitos relevantes em particular. Ai, senhora Primeira-Dama, não vai daqui de mãos a abanar, leve lá uma Grande Cruz toda catita, para arrumar na gaveta, sim? Obrigada por seres quem sois, neste caso «mulher de».
Mas pronto, já se sabe que, por estas paragens, está sempre tudo bem, o sol brilha e o povo é sereno…
Têm sido dias intensos desde que «E se eu morrer amanhã?» chegou às livrarias. De entrevistas a eventos, de feiras ao lançamento, tenho andado numa feliz azáfama, a qual me permite falar deste livro e, principalmente conversar com os meus leitores.
Para que não percam os próximos eventos, deixo aqui a minha agenda, à qual espero ir acrescentando mais datas, sobretudo fora da Grande Lisboa.
É hoje que podem encontrar o meu novo romance em todas as livrarias físicas e online. Se quiserem receber uma oferta especial, comprem-no no Book Gang e estarão a também a apoiar o projecto da minha “book sister” Helena Magalhães.
A apresentação oficial será no dia 15 de Abril, pelas 16h, na Livraria Martins em Lisboa. Será uma conversa entre mim e a Cláudia Lucas Chéu, moderada pela Diana Garrido, em que, partindo da minha obra, falaremos de sexualidade, preconceitos em relação às mulheres mais velhas e outras questões que quis abordar neste livro.
Quando o telemóvel tocou, às três e vinte da madrugada, Luísa soube por instinto que se tratava de uma má notícia. Sentou-se na cama, sobressaltada, e tacteou a mesa-de-cabeceira à procura dos óculos, para conseguir ler o nome que gritava no visor.
— Marília? O que se passa? — perguntou, assustada.
— Houve um incêndio em casa da tua mãe — respondeu a cunhada, que ia no carro, pelo menos a julgar pelo barulho de fundo.
— Um incêndio?! Oh, meu Deus! Ela está bem?
— Sim, ligou-me quando ia a caminho do hospital, mas estava com uma voz serena.
— Hospital?
— Devido à idade, querem garantir que os pulmões estão bem tranquilizou Marília. — Estou a ir para lá agora.
— Também vou!
— Não, espera! Tu tens de ir até ao apartamento para verificares os estragos e veres se consegues trazer a carteira dela, roupa e essas coisas.
Enquanto se vestia com a roupa do dia anterior, resgatada do chão da casa de banho, e fazia uma lista mental das coisas de que a mãe precisaria, Ricardo acordou, estremunhado, e ficou à espera de que a mulher lhe indicasse se era preciso mexer-se ou não. Dos lábios dela, ouviu incêndio… hospital… a mãezinha está bem… tenho de ir a casa dela… deixa-te estar, pelo que apenas garantiu que estaria atento ao telefone e voltou-se para o outro lado. Luísa correu até à porta, arrancando a mala do cabide, vestiu o primeiro casaco que agarrou e percebeu que as chaves do carro não estavam no móvel da entrada, como era suposto. Suspirou, irritada, e entrou no quarto da filha sem acender a luz, vasculhando os bolsos das calças dela, onde suspeitava que ela as teria deixado, esquecidas, como era seu hábito. Fingiu não reparar no cachimbo de água que estava sobre a mesa-de-cabeceira. Queria acreditar que era apenas decorativo, mas… e se não fosse? Estaria a filha a consumir algum tipo de droga? Deveria falar com ela sobre o assunto? Afastou tais pensamentos com firmeza, até porque tinha preocupações mais urgentes com as quais lidar. Afinal, a filha já era uma mulher de vinte e dois anos. Uma estudante dedicada, a caminho do terceiro curso superior (embora não tivesse terminado nenhum dos outros), e que nunca se tinha metido em problemas. Vivia da mesada que os pais lhe davam e de um part-time a passear cães na vizinhança, é certo, e não tinha planos para sair de casa nos próximos dez anos, como milhões de outros jovens da sua idade, mas era importante respeitar o seu espaço e assumir que era uma adulta com quem partilhavam a casa. De graça. Fechou a porta devagar atrás de si, de modo a não perturbar o sono da filha, e pôs-se a caminho do apartamento em chamas.
O único lado positivo de coisas como esta acontecerem às tantas da manhã é não haver trânsito na estrada e os semáforos estarem em modo intermitente, pensou Luísa, enquanto acelerava pelas ruas vazias e quase irreconhecíveis à luz da noite. Os prédios ganhavam todos a mesma tonalidade amarela da iluminação nocturna e a quietude permitia escutar o deslizar dos pneus no asfalto. Sem buzinadelas, sem pára-arranca, sem protestos do carro de trás, conduzir até se tornava uma actividade agradável. Em apenas cinco minutos, chegou à porta de casa da mãe, onde os bombeiros já estavam a terminar o seu trabalho e a prepararem-se para partir. Um deles estava a falar com um vizinho, que Luísa nunca tinha visto antes e que estava encostado à parte de trás de uma ambulância. Era um homem alto e bem-parecido, pese embora a idade avançada. Envergava umas calças de ganga e, por cima, apenas um roupão de seda florido e vaporoso.
— Desculpe interromper, o meu nome é Luísa, sou filha da senhora que foi levada para o hospital — disse ela, dirigindo-se ao bombeiro.
— Ah, bom, então, estava aqui a explicar ao seu pai…
— Pai? — interrompeu Luísa. — Eu não conheço este senhor de lado nenhum!
— Jaime Cortês — disse o homem de robe de seda, estendendo a mão. — Sou o… vizinho.
Luísa olhou-o com estranheza e, sem responder, voltou-se de novo para o bombeiro.
— Já terminaram tudo? É seguro a mãezinha voltar para casa?
— Bom, hoje não voltará de certeza! — respondeu o bombeiro, num tom levemente trocista. — Embora o incêndio tenha ficado circunscrito à sala, são precisos vários dias até o fumo se dissipar totalmente, já para não falar da água. Amanhã, os peritos da polícia e da protecção civil virão verificar o estado da fracção e se há danos nas fracções adjacentes ou zonas comuns. Também virá o perito dos seguros, sabe como é. Depois, convém fazer umas obras de reparação e de pintura, o tecto está todo negro, mas, primeiro, a água tem de evaporar bem, senão, empola. Enfim, é coisa para, no mínimo, três semanas.
— Três semanas? E, até lá, onde é que a mãezinha fica?
— Olhe, não tenho nada que ver com isso, mas, em vez de se preocupar com onde ela fica, devia estar agradecida por a sua mãezinha estar bem e o fogo não ter atingido outras casas. Estes incêndios a meio da noite com pessoas idosas normalmente não acabam bem.
— E posso, ao menos, ir lá acima buscar as coisas dela?
— Um elemento da nossa equipa já esteve lá. Trouxe os documentos e alguns objectos pessoais para a sua mãezinha — respondeu o bombeiro, estendendo-lhe um saco de pano.
Luísa espreitou, incrédula, para o conteúdo do saco. Estavam lá os documentos, os óculos, uma camisa de dormir, roupa interior, umas pantufas, um casaco, umas calças, uma blusa, a escova de dentes, a escova de cabelo e um hidratante de rosto. Luísa interrogou-se como teriam os bombeiros encontrado tudo tão facilmente. Devem ter andado a abrir todas as gavetas, pensou, indignada, a imaginar as mãos enormes e cobertas de fuligem a devassar a intimidade da sua mãezinha. O que valia era que, na idade da mãe, não havia nada a esconder. E as jóias estavam no cofre. Voltou para o carro, preocupada, olhando para a janela da sala do terceiro andar, antes adornada com cortinas floridas, agora um buraco enegrecido. Parecia-lhe que o bombeiro tinha sido optimista quando falou em três semanas. Ainda por cima era Agosto. Onde iria encontrar alguém disponível para fazer a obra de reparação? Tinha de falar com Marília sobre quem tomaria conta da mãezinha até o arranjo estar concluído. Certamente, a cunhada e o irmão, que viviam numa casa com vários quartos vazios. Se bem que teria de esperar que o Rui regressasse para tocar no assunto. Incrível como, sempre que havia uma crise familiar, o irmão não estava. Sobrava tudo para ela. Sem-pre. De repente, veio-lhe à memória uma frase que amiúde ouvia a avó dizer à mãezinha: «Ainda bem que tiveste uma menina para cuidar de ti na velhice.» Será que a necessidade que sentia de cuidar da mãe lhe fora incutida por frases como essa, ou faria parte do código genético feminino? Estariam as mulheres geneticamente e irremediavelmente programadas para cuidar dos outros? Filhos, pais, maridos? Mas, nesse caso, porque era sempre para casa do irmão que a mãe ligava quando precisava de alguma coisa? Deixou-se levar por tais divagações, enquanto se dirigia ao hospital.
Assim que passou pela porta das urgências, afogueada, Luísa encontrou a cunhada sentada na ponta de uma cadeira da sala de espera, com um ar enjoado, como se, ao recostar-se e respirar normalmente, pudesse ser atingida pelas maleitas dos doentes com quem partilhava aqueles metros quadrados.
— Obrigada por teres vindo para cá, Marília. Já estiveste com ela? — perguntou, preocupada.
— Não, ainda está lá para dentro, em observação — respondeu a cunhada. — Mas, quer dizer, isto é coisa para durar horas, a julgar pelo que se vê aqui. Aquele senhor está praticamente a falecer e ainda ninguém o veio ver. E o outro tem um olho ao peito não tarda. Ali, estás a ver?
Luísa ignorou o comentário da cunhada.
— Já conseguiste falar com o Rui? Como é que isto aconteceu? — Não sei, ao telefone, ela disse-me que está óptima, não tem nem um arranhão, só a sala é que ardeu, porque deixou a lareira acesa sem a guarda e pegou fogo à carpete.
— Lareira acesa? Em Agosto? Ai, meu Deus, eu sabia! A mãezinha não está bem!
— Achas?
— Claro que acho! Quem é que acende a lareira em Agosto? E anda meio distraída, sempre a esquecer-se das coisas…
— Agora que falas nisso, já por mais de uma vez se esqueceu de que tinha um almoço na nossa casa — recordou Marília.
— Sabes, este ano nem deu os parabéns ao Ricardo, imagina! — Na verdade, isso também já me aconteceu. Sou péssima com aniversários.
— Bom, isso não interessa agora. O que temos de saber é para onde é que a mãezinha vai nas próximas semanas. O bombeiro disse-me que o fogo não passou da sala, mas, ainda assim, vai ser preciso arranjar o chão, pintar o tecto…
— Não me digas!
— Eu posso ficar com ela por agora, mas depois ela vai ter de ir para a vossa casa. Nós vamos de férias dentro de dias.
— Como assim? O teu irmão não está cá! Não vou ser eu a tomar conta da vossa mãe, ainda para mais, demente!
— Mas…
— Luísa, tem paciência — respondeu Marília, com naturalidade. — Não me posso responsabilizar sozinha. Quando o Rui voltar, logo decides isso com ele. Mas lembra-te de que o gato não fica lá. Tenho imensa alergia.
— O gato! — gritou Luísa, com enorme preocupação.
— Morreu?
— Não sei, não vi gato nenhum! Ai, Marília, se o gato morreu, a mãezinha vai ter um desgosto — choramingou Luísa.
— De certeza que não morreu, os gatos têm sete vidas — respondeu a cunhada, pouco solidária com a preocupação pelo bem-estar de um animal que detestava.
Ao fundo do corredor, abriu-se a enorme porta onde estava escrito em letras garrafais: «Não passar. Acesso restrito.» De lá, surgiu uma auxiliar do hospital mal dormida a empurrar uma cadeira de rodas, na qual uma senhora de aspecto frágil, mas sorridente, estava confortavelmente sentada. Luísa reparou que vestia uma bata de hospital e que tinha pousado no colo algo que se assemelhava a um lençol de padrão exótico, cuidadosamente dobrado.
— Não me diga que a mãezinha vai ter de ficar cá… — lamentou-se Luísa quando a auxiliar parou a cadeira de rodas à sua frente.
— Mas a mãezinha está de bata — notou Luísa. — Vai ser internada, não vai?
— Não — interrompeu a auxiliar. — A senhora está de bata porque vinha apenas enrolada no lençol. Não temos roupa para lhe vestir.
— Oh, Helena, que vergonha — exclamou Marília. — Não me diga que saiu assim de casa, enrolada num lençol?
— Querias que ficasse no meio do fogo a vestir-me?
— Mas porque é que não estava de pijama? Agora dorme nua, é? Na sua idade? — insistiu Marília.
— Então, mãezinha? — interrompeu Luísa, num tom mais alto do que aquele que usava para falar com as outras pessoas. — Estava com calor por causa da lareira, não estava? — perguntou, segurando a mão da mãe. Depois olhou para a cunhada, levando o indicador junto da têmpora, desenhando com ele pequenos círculos no ar.
— O Chopin? — perguntou Helena, mudando de assunto.
Luísa temera por aquela pergunta. Não fazia ideia onde se teria metido o bicho, se estava morto ou vivo. Na verdade, nem sequer se lembrara de procurá-lo. Melhor dizendo, nem sequer se lembrara de que a mãe tinha um gato. Provavelmente, o bicho fugira, assustado, como fazem todos os animais quando sentem perigo. Tanto podia já ter regressado a casa, como aproveitado para saborear a liberdade. Para sempre.
— Não se preocupe, mãezinha — continuou Luísa, falando devagar. — Já vamos tratar de tudo. O que importa é que está bem.
Findas as burocracias para a alta hospitalar, o dia raiava quando saíram do hospital. No caminho para casa, Helena insistiu em encontrar o gato, que não iria dormir enquanto não o encontrasse, ameaçando mesmo fugir para ir procurá-lo, pelo que Luísa teve de se dirigir novamente ao apartamento carbonizado. Felizmente, o bicho saiu de debaixo de um carro assim que ouviu a voz da dona. Saltou-lhe para o colo e ali foi, aninhado, todo o caminho. Em vez de ficar aliviada e feliz pela mãe, Luísa ficou a pensar se o gato arranharia os sofás. Olhou para a mãe pelo canto do olho e notou que ela sorria, como se estivesse alheada da gravidade do que acabara de acontecer. Sentiu o coração apertado e os olhos marejados de lágrimas. Estaria na altura de consultar um psiquiatra, para atestar a saúde mental da sua progenitora?
Desde que comecei a publicar livros, volta e meia recebo mensagens de estudantes a pedir conselhos sobre publicação, dicas de escrita ou listas de leituras. Há uns meses recebi o pedido para dar uma entrevista para um trabalho da faculdade. A Susana Neto está a tirar Ciências da Comunicação na Universidade Autónoma e escolheu-me como tema para o seu trabalho e eu aceitei logo, porque um dia também fui estudante de comunicação e também tive de fazer uma entrevista “a sério”. Na altura, foi a Judite Sousa quem me concedeu um pouco do seu tempo e eu nunca esqueci a sua simpatia.
A Susana comportou-se como uma verdadeira profissional e acho que merece que o seu trabalho seja lido por mais pessoas para além da professora, até porque o resultado é muito interessante. Ora leiam!
Filipa Fonseca Silva: “O meu sonho sempre foi ser escritora”
por Susana Neto
Filipa Fonseca Silva, 43 anos, tem atualmente seis livros publicados em Portugal. Além de escritora é também, dona da Not Yet Famous, uma marca de óculos de sol e T-shirts. Licenciou-se em Comunicação Social e Cultural pela Universidade Católica, e trabalhou como criativa publicitária até 2017.
Como começou a sua paixão pela literatura? Desde que me lembro. Em miúda pegava nos livros e como não sabia ler, inventava histórias, andava sempre com livros na mão e olhava para as imagens. Contava em voz alta aquilo que estava a ver pelas imagens. Desde os seis anos, quando aprendi a ler e a escrever, nunca mais parei.
Qual foi o motivo que a fez querer tornar-se escritora? Sempre quis ser escritora. Quando era miúda escrevia histórias, tentava escrever com a letra mais bonita que conseguia. Fazia as capas e colocava a minha fotografia na contracapa. Tentava fazer com que parecesse um livro autêntico. Ser escritora sempre foi o meu sonho, mas quando foi a altura de ingressar para a faculdade vi-me em desacordo com os meus pais. Literatura não é o curso com maior sucesso e ser escritora em Portugal não é considerado uma profissão, mas sim quase como um hobby, como que alguém que faz qualquer coisa e também escreve. Consequentemente, optei por enveredar pela Comunicação Social, achando que, no final, iria optar pela vertente jornalística, sendo uma profissão que me permitiria escrever. Mais tarde, optei pela vertente publicitária, por me dar a possibilidade de ser criativa. Cada anúncio é como contar uma pequena história, e foi isso que me fez apaixonar pela publicidade. Mesmo só com 30 segundos, conta-se uma história.
No seu instagram e no seu site afirma ser feminista. Tem o feminismo um papel nos seus livros? Os livros que escrevo não são, por si, feministas. Tento sempre focar-me em temas que me preocupam. Já abordei relações abusivas, a gravidez na adolescência e o aborto clandestino. Há temáticas que são importantes e que quero passar. Para mim, a literatura tem esse papel de humanização, de dar perspetivas diferentes. O feminismo torna-se mais um desses temas. Não é uma literatura em que só há mulheres e todas são heroínas. É bom que sejamos todos uma sociedade em que as coisas se complementem, o masculino e feminino e não haja uma divisão em que um está acima do outro. Mas gosto de mostrar a perspetiva feminina, o ponto de vista das mulheres.
Quais as mensagens que pretende passar com os seus livros?
Questões que me inquietam. Por vezes políticas, como os refugiados, outras vezes as relações entre seres humanos. Todos os livros devem conter uma mensagem, assim como os contos de fadas que têm moral da história. No fundo, obrigar o leitor a pensar. Gosto de trazer temas que enriqueçam os leitores, que não sejam apenas entretenimento. Tento mostrar aos leitores perspetivas de vida diferentes. As minhas personagens são sempre pessoas banais, mas mesmo essas pessoas anónimas têm histórias. Lá por não descobrirem a cura de uma doença não quer dizer que não sejam pequenos heróis das suas vidas, que não participem na história da humanidade. Resgatar os anónimos, talvez seja essa a minha maior mensagem: as pessoas comuns, também têm algo que as torna incomuns e todas as histórias interessam, por mais banais que pareçam.
Como é ser uma autora em Portugal? Acha que existe pouca valorização pelos escritores nacionais? Sim, a literatura em Portugal é muito fechada. Há um certo “snobismo”, no sentido em que só é considerado literatura algo erudito e difícil, que requer concentração. Tudo tem de ser muito poético e filosófico. Quando surge algo com uma linguagem mais simples e fácil, é categorizado como literatura banal, que não interessa. Existe esse preconceito. Além disso, ainda existe um certo machismo. Por exemplo, o prémio Saramago, todos os vencedores convidados para estar no palco este ano eram homens. Se uma mulher escreve um livro sem grandes aspirações filosóficas, é considerada uma literatura mais simples, mais comercial. Como foi escrito por uma mulher é logo colocado de lado, mas se a mesma história fosse contada por um homem já era considerado um romance. Os homens têm sempre mais destaque, além de mais entrevistas. O que é estranho, porque são as mulheres que mais compram livros. São as próprias mulheres que não levam a sério as autoras nacionais? É porque o livro nunca teve grande destaque? Há imensas questões que têm de ser levantadas. Há muitas mulheres portuguesas a escrever bem. Na minha conceção de feminismo tem de haver igualdade, e para isso tem de existir equidade na representação e nas oportunidades.
Durante toda a sua carreira profissional, qual foi a maior lição que aprendeu? Um dia transmitirei aos meus filhos que ninguém é insubstituível e, às vezes, quem chega mais longe, não são sempre os melhores. Há uma data de fatores que influenciam a carreira de uma pessoa. Às vezes é uma questão de sorte. Acho que devemos dar sempre o nosso melhor, mas com essa noção. Vai sempre haver injustiças, vai sempre haver aquele colega que vai ser mais reconhecido e faz metade do que os outros fazem. Não deixar que isso condicione a nossa auto-estima, porque nós somos muito mais do que aquilo que fazemos. A profissão é muito importante, como é obvio, não só porque precisamos de dinheiro, mas por realização pessoal. Mas a profissão não é o que nos define.
Este ano saiu um estudo que revelava a falta de interesse dos portugueses pela literatura. 61% da população nacional não leu um único livro em 2020, ano de pandemia. O que se pode fazer para alterar este problema?
Há vários problemas, mas o que mais se destaca é o plano nacional de leitura. É completamente arcaico e desatualizado. Saramago é o meu autor preferido, apesar de só o ter lido aos 28 anos. Claro que é importante saber quem foi Saramago, Eça de Queiroz e Camões, pois faz parte na nossa cultura. No entanto, não é bom obrigarem adolescentes a ler os grandes cânones da literatura portuguesa. É mais importante as pessoas gostarem de ler. Existe um livro, um autor para todos. Há tanta coisa diferente, tantos estilos de escrita e géneros literários, que é só uma questão de as pessoas encontrarem o seu. Se obrigam os miúdos a ler, com 15 anos, «Os Maias», é normal que não corra bem. É necessário construir o leitor. «O Crime do Padre Amaro» é muito mais divertido, e o mesmo com Saramago, «A viagem do elefante”» é simples de ler. Devemos criar o hábito de leitura primeiro, e mais tarde, as pessoas vão sentir necessidade de ler coisas diferentes. Além disso, a literatura evoluiu desde os grandes cânones portugueses. Há livros muitos interessantes de autores mais atuais, também literários e académicos, que tocam assuntos mais interessantes para a juventude da sociedade atual, e que talvez lhes dê vontade de ir às bibliotecas e livrarias. Isso é o importante, colocar as pessoas a ler.
Outro grande problema é a falta de apoio à cultura. Do pouco do orçamento que vem para este setor, uma pequeníssima porção vai para a literatura. Os livros são caros porque não são feitas tiragens grandes. Uma edição não tem mais de 2 mil exemplares e assim as editoras não conseguem baixar os preços. Não há qualquer investimento, por parte do governo na literatura.
Acha que as plataformas digitais trazem uma maior facilidade para conseguir expor os trabalhos?
São incríveis. Não só para expor trabalho, mas para criar uma relação com os leitores. Sempre coloquei o meu e-mail no final dos meus livros. Atualmente já não preciso dos e-mails. As redes sociais permitem esse contacto. Embora tenham aspetos extremamente negativos, adoro essa facilidade. As pessoas não têm noção do quão espetacular é para um autor receber mensagens dos leitores, não tem preço. Para mim é muito gratificante, quando recebo uma mensagem a dizer que o livro foi muito especial.
Para si, qual o futuro da literatura portuguesa?
O futuro é bom. Finalmente os portugueses começam a dar mais atenção aos autores nacionais. Há muitos autores diferentes, de diferentes géneros. Os autores nacionais são bons. Ainda é necessário alterar um bocado a mentalidade portuguesa, não só na literatura. Por vezes, ainda somos um pouco “provincianos” em achar que aquilo que é bom é o que vem de fora. Mesmo assim, devido às redes sociais, existe uma grande abrangência e possibilidade de conhecer coisas novas, ou seja, há uma maior democratização no acesso à literatura. O futuro é brilhante.
Nós, mulheres, somos tendencialmente más umas para as outras. Através da arte de maldizer, gostamos de minimizar feitos e acentuar rivalidades que, na maior parte das vezes, apenas existem na nossa cabeça. Que está mais gorda, que está muito magra, que está cheia de rugas, que está mal vestida, que não se cuida, que deixa os filhos fazerem tudo, que nunca sai de casa, que sai demasiado de casa, que está casada com um mono, que não assenta com ninguém, que é uma púdica, que é uma puta, que o sucesso lhe subiu à cabeça, que deve ter dormido com alguém, que é rica mas está sozinha, que é casada mas infeliz, que é bonita mas burra, antipática ou desinteressante e por aí fora. Frases como estas ecoam nas conversas de café, em jantares de amigos e nos mais diversos eventos sociais, dirigindo-se a conhecidas e desconhecidas, a colegas de trabalho e até mesmo a familiares. Esquecemo-nos é que, quando dizemos qualquer uma destas frases, estamos apenas e só a perpetuar uma construção da sociedade patriarcal.
A rivalidade entre mulheres é um conceito que tem por base a busca por validação masculina. Durante séculos fomos educadas para agradar aos homens de modo a conseguir agarrar o melhor pretendente, que garantisse o nosso sustento e o dos nossos filhos. Tínhamos de ser a mais bonita, a mais desejada, a mais prendada, a melhor mãe, a melhor filha, a melhor esposa. Fomos também educadas para desconfiar das outras mulheres, assumindo que só se aproximam de nós para nos roubar o marido, o emprego ou a mera receita daquele bolo que toda a gente elogia. É uma narrativa que começa a desenrolar-se logo na infância, quando nos contam histórias de embalar com uma Rainha Má, que quer matar a Branca de Neve apenas porque ela é a mais bela, ou uma Úrsula, que engana a pequena Ariel para lhe roubar a magnífica voz. Mulheres boas e mulheres más, divididas, separadas, irreconciliáveis. Até que aparece um príncipe para salvar a boazinha da sua rival, apaixonam-se à primeira vista (porque o que interessa é o exterior) e vivem felizes para sempre. Moral destas histórias para enganar meninas: desconfiem sempre das mulheres e contem com os homens para resolver os vossos problemas. É por isso que, ainda hoje, quando tantas de nós já nos assumimos como feministas e lutamos juntas pelos nossos direitos, continua a ser difícil elogiar espontaneamente outra mulher e, principalmente, defendê-la sem hesitar sempre que ouvimos uma frase como as acima mencionadas.
O antídoto para este mal profundamente enraizado na sociedade é apenas um: sororidade, «a relação de união, afeição ou amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs», pelas palavras do dicionário. Ou por outras: «a resposta moral às tentativas do patriarcado de estabelecer desunião entre as mulheres»[1].
Sororidade vem do latim soror, que significa “irmã” e pode ser considerado o feminino de fraternidade, que se originou a partir de frater, que significa “irmão”. A primeira vez que o termo surgiu foi pela pena do escritor e filósofo espanhol Miguel de Unamuno no seu romance «A Tia Tula», publicado em 1921, onde, fazendo alusão a Antígona, escreveu: «así como tenemos la palabra paternal y paternidad, que derivan de pater, padre, y maternal y maternidad, de mater, madre, y no es lo mismo, ni mucho menos, lo paternal y lo maternal, ni la paternidad y la maternidad, es extraño que junto a fraternal y fraternidad, de frater, hermano, no tengamos sororal y sororidad, de soror, hermana”. Durante a chamada «Segunda Vaga do Feminismo» (1960-80) o termo assumiu uma carga política e militante, propondo uma ligação de irmandade entre mulheres que se sobrepusesse a qualquer diferença de classe, raça, religião, nacionalidade ou orientação sexual. Hoje, em plena quarta vaga feminista, a palavra ganhou uma maior carga emocional, sendo usada como um apelo às mulheres para que parem de competir, de se comparar umas como as outras, de se olharem como rivais, e comecem a ver-se como irmãs.
A sororidade está, aliás, por trás da Teoria do Brilho (tradução livre), no original The Shine Theory, sugerida pela jornalista do New York Times Ann Freidman num artigo que escreveu em 2013. Nesta peça, Freidman explica que a maior parte das vezes somos duras com as outras mulheres porque nos sentimos inseguras e encaramos o sucesso das outras (seja na esfera privada, seja na esfera profissional) como uma afronta pessoal. «Quando odiamos outras mulheres que nos parecem mais bem-sucedidas do que nós, estamos apenas a expressar os sentimentos negativos que temos em relação às nossas próprias carreiras, corpos ou relações. Mas há uma solução: quando conheceres uma mulher que te intimida pela sua inteligência, estilo, beleza ou realização profissional, torna-te amiga dela. Rodeares-te das melhores pessoas não te torna pior em comparação. Torna-te melhor». Esta é a base da Teoria do Brilho: se uma brilha, brilhamos todas. Diversos estudos científicos demostram que, sobretudo na área profissional, as mulheres que mantêm uma rede de contactos com outras mulheres e que se ajudam mutuamente, conseguem posições mais importantes e, consequentemente, mais bem pagas. Neste sentido, sugiro a leitura de um outro artigo muito interessante que encontrei na Forbes, «The Power of the pack: woman who support women are more successful», que começa logo com uma frase que devíamos todas tatuar na testa: uma mulher sozinha tem poder. Juntas temos impacto.
Voltando à Teoria do Brilho, embora a autora incentive a que tem menos a aproximar-se da que tem mais (sucesso, reconhecimento, confiança), eu acho que o inverso também deve acontecer. Se tivermos a sorte de sermos nós a estrela mais brilhante do grupo, então cabe-nos iluminar as nossas irmãs que se escondem na sombra. E isto faz-se tanto com gestos simples como avisar que tem um bocado de alface nos dentes, partilhar o massagista que nos livrou da celulite ou o nome da loja onde comprámos aquele vestido tão cobiçado, como com gestos mais impactantes como partilhar a nossa rede de contactos profissionais, dizer quanto ganhamos ou dar dicas de negociação para uma promoção. Passa também por nos elogiarmos umas às outras. O elogio sincero vindo de outra mulher é um enorme acelerador da auto-confiança. Porque quando um homem nos elogia, achamos que está apenas a ser cavalheiro ou a lançar charme, mas se for uma mulher, que não nos quer nada nem precisa de nós, ficamos desarmadas e acreditamos que está a ser sincera. Se calhar estamos mesmo bonitas. Se calhar fizemos mesmo um bom trabalho. Se calhar devemos estar mesmo orgulhosas de nós próprias. E, então, a nossa luz começa a tremeluzir, depois a tornar-se mais forte e brilhante, até nos sentirmos invencíveis. De repente, deixa de haver uma só estrela e passa a existir uma constelação de mulheres confiantes, determinadas, imparáveis e que, acima de tudo, estão lá umas para as outras.
Recentemente tive a sorte de encontrar uma estrela brilhante do panorama literário português. Uma mulher incrível, que criou uma plataforma que reflecte tudo o aquilo que acabei de escrever: o BookGang. Trata-se de uma livraria virtual/curadoria literária que apenas tem livros escritos por mulheres. Ali, a Helena Magalhães, que também é escritora, promove os livros de outras mulheres, com ainda maior ênfase quando são portuguesas, a milhares de leitores que subscrevem mensalmente as suas caixas de livros. Além de estar a pôr cada vez mais pessoas a ler, a Helena é um exemplo de uma mulher que, ao brilhar, ilumina todas as outras, tendo hoje uma comunidade de mulheres que acarinham e promovem o trabalho de outras mulheres. Uma verdadeira sororidade.
Nesta quarta vaga feminista, continuamos a lutar para termos mais voz, para mudar hábitos patriarcais, para acabar com as desigualdades salariais e com os estereótipos sociais. Mas para que tal aconteça, tem de se começar por uma mudança de paradigma entre nós próprias: da rivalidade para a sororidade. Temos de ser nós, mulheres, as primeiras a elogiar, a promover, a incentivar e a defender as outras mulheres, até porque, se o lema do inimigo é dividir para reinar, a única estratégia para o vencermos é mantermo-nos unidas.
[1] Tatiana Leal “A invenção da sororidade: sentimentos morais, feminismo e mídia”, de 2019.