Há que fazer-nos ao mar

«Há-que fazer-nos ao mar ou ficaremos cercados» diz o poema. Ficaremos pergunto? É que a meu ver, já estamos cercados e parece que poucos deram por isso.

Já estamos cercados, sim, pelo marasmo.

Os mais velhos trocaram as armas pelo queixume, deixando-se cair facilmente na nostalgia de gloriosos tempos passados. Tempos em que havia cantigas de intervenção e as sementes de revolta de que fala o poema que dá o mote a esta mesa.  «No meu tempo é que era bom!», dizem, esquecendo-se de que hoje, agora, é o seu tempo. Nenhum outro existe.

Os mais novos, que já nasceram em liberdade e que a dão por garantida, deixam-se iludir pelo mundo virtual onde saltitam impacientes entre vidas embelezadas com filtros, notícias falsas e conteúdos ao género fast-food: rápidos de consumir, vazios de substância. Tudo tem de ser já, acessível, resumido em poucas palavras, ou de preferência em imagens. Nada que exija mais de alguns minutos de concentração.

Já estamos cercados, sim, pelo conformismo.

Nada vai mudar. É assim, e assim será. Eles é que mandam, eles é que decidem. Eles, eles, eles, essa entidade onde depositamos o nosso futuro como se não tivéssemos escolha. O conformismo que se materializa em 50% de abstenção, quando não é mais. Faz-se um gosto, partilha-se um post solidário, puxa-se o assunto muito ao de leve no café, e fica por aí o nosso activismo, pois temos os nossos direitos salvaguardados. E são tantos que até já esquecemos quem lutou por eles e de como tão facilmente podem ser revertidos.

No entanto, parece que ninguém tem deveres. José Saramago já tinha alertado para isto aquando da entrega do Prémio Nobel de Literatura. «Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor», disse então. Ninguém fez caso. É muito chato ter deveres e obrigações para lá do nosso quintal.

Já estamos cercados, sim, pelo politicamento correcto e pela política de cancelamento de tudo o que não encaixa naquilo que alguns consideram o bom, o bem, o justo. Temos de pensar cinco vezes antes de falar, escrever ou publicar o que quer que seja. Artistas em auto-censura para não caírem em desgraça.

Tudo deve ser unidimensional, porque a ambiguidade pode levar a interpretações erradas. E temos de estar sempre dispostos a pedir desculpa por podermos vir a ofender alguma minoria que nem sequer sabíamos que existia. Se bem que convém não admitir esse desconhecimento, pois também ele é tremendamente ofensivo. Liberdade de expressão, mas com calma, que há coisas que não se podem sequer pensar. Bom, na dúvida, o melhor é mesmo não pensar.

Já estamos cercados, sim, por aqueles que acham que as mulheres estão a ir longe de mais. Os que se sentem ameaçados pela continua luta feminista, tentando minimizar a sua relevância nos dias que correm, como se não houvesse ainda tanto que fazer no caminho até à equidade. Os que que dizem já não haver discriminação. «Podem votar, podem abortar, podem até pilotar aviões, imagine-se! O que querem mais?»

Que engano… Não é por não sentirmos a discriminação na pele que ela deixa de existir. Seja de género, seja de raça, seja de que natureza for. E ela ainda se sente em todo o lado, mesmo que velada e subtil, mesmo que vestida de piada. Sente-se no mercado de trabalho, nos lugares de poder, e até na Literatura, onde se insiste em criar a sub-categoria da Literatura Feminina, diferente da outra, a verdadeira Literatura, a dos génios, homens, cis.

Já estamos cercados, sim, pela higienização da língua, que agora deve ser neutra e agradar a todos. Retirem-se do dicionário certas palavras vis! Gorda, preto, maricas, velha, deficiente. Apague-se tudo. Implementemos a novilíngua, com duas óbvias vantagens: poupamos no papel dos dicionários e nunca mais ninguém ficará ofendido.

Eu, pessoalmente, prefiro que as palavras me ofendam, me magoem, pois aí saberei que elas servem para alguma coisa, quem sabe até, para salvar a humanidade, com as frases de que nos falava Almada Negreiros e que já foram todas inventadas.

Contudo, para que tal aconteça, as palavras têm de sair desta sala, espalhar-se pelas ruas, ditas em voz alta, sem medo.

Palavras como ACORDAR.

Não nos deixemos intimidar por episódios da nossa história, que parecem irrepetíveis. Nem amedrontar por quem prefere um povo sereno, calado, anestesiado, profundamente adormecido.

Palavras como FAZER

Façamos, mesmo quando os críticos nos enxovalham, alegando que as novas gerações estão perdidas e não têm a capacidade para produzir nada de realmente original e disruptivo. Pois para mim, nos dias que correm, disruptivo é precisamente fazer. Fazer e errar, e tentar de novo, e errar outra vez.

Palavras como FALAR

Porque o mal alimenta-se do silêncio. Somos todos cúmplices quando ficamos calados, quando não intervimos perante uma injustiça, quando olhamos para o lado. E olhamos tantas vezes para o lado… perante um sem abrigo que nos estende a mão, perante um grupo de jovens que vandaliza um canteiro, perante as notícias de guerras e genocídios, perante a primavera que agora chega em fevereiro, perante o rapaz que aperta o braço da namorada com demasiada força, perante a colega que não foi promovida porque engravidou.

Shiu, que não é nada contigo. Shiiiiiiu não te metas em confusões. Olhos que não vêem, coração que não sente.

Já estamos cercados, sim. Os rios secaram, os caminhos fecharam-se e é tarde de mais para nos fazermos ao mar.  Estamos cercados por caixas onde nos querem arrumados, sossegados, empilhados, e sobretudo, quadrados.

E, no entanto, ainda há como fugir deste cerco. Olhem para cima! Sim, ainda podemos elevar-nos. Ascender. Construir uma escada humana para um lugar onde o coração sente, mesmo quando não vê. Um lugar onde não cabe o medo nem a resignação.

O céu é o novo mar. E o céu, como sabemos, é infinito. Por isso acordemos e façamos e falemos. Bem alto.

*texto produzido para a minha intervenção no Festival Literário Correntes d’Escritas, a partir de um verso da canção Erguem-se Muros de António Ferreira Guedes.

Podem ver aqui o vídeo da sessão completa, onde falaram também Afonso Cruz, Dany Wambire, Madalena Sá Fernandes e Marta Bernardes. Ou ler o resumo no artigo publicado pela CM Varzim.

2 opiniões sobre “Há que fazer-nos ao mar

  1. Olá Filipa.
    Como diz no seu maravilhoso texto:
    “Palavras como ACORDAR.
    Não nos deixemos intimidar por episódios da nossa história, que parecem irrepetíveis. Nem amedrontar por quem prefere um povo sereno, calado, anestesiado, profundamente adormecido.”

    Antecipo-me à sua permissão e com a devida vénia, vou publicá-lo nas redes sociais. De tal peço desculpa, mas é necessário que mais pessoas o leiam. Principalmente os que nasceram após 1974-
    Não deixe de escrever, por favor. Amo ler os seus textos-
    Cumprimentos e um beijinho de um homem de 80 anos.

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