O regresso das múmias

Saiu recentemente um livro de ensaios sobre a família e o seu papel na sociedade, que já vem com traças e tudo. Um livro que, aparentemente, visa traçar um perfil ético da vida em sociedade com textos de várias personalidades ligadas à direita conservadora e/ou à Igreja. Começamos logo mal, não é? Para traçar um perfil ético da vida em sociedade seria interessante ver o que pessoas de outros quadrantes políticos e religiosos têm a dizer sobre o assunto.

O livro foi apresentado por um ex-primeiro ministro que está mortinho para voltar a ter relevância política, nem que para isso tenha de se juntar ao partido do seu mais entusiasta discípulo. No discurso de apresentação disse coisas incríveis e verdadeiras, tais como: às vezes há a impressão de que as pessoas andam à procura de sarna para se coçarem e que querem criar falsos problemas onde eles não existem e isso, às vezes, é utilizado para não resolver os que existem e não a discutir os que existem. Não podia concordar mais. É precisamente isso que o livro veio fazer: falar de coisas que não são um problema. Um problema é não haver casas, escolas, médicos de família, salários dignos. Aliás, eu acho até que as famílias estão cada vez mais unidas, porque, mesmo que quisessem, os filhos não conseguem deixar a casa dos pais e os pais não conseguem pagar as contas sem a ajuda dos filhos.

Depois, assim do nada, o senhor António de Oliveira, perdão, Passos Coelho, questionou por que razão as políticas públicas pretendem ajudar as pessoas a morrer em vez de lhes dar condições para que elas possam viver com dignidade humana? Ora, Dr. Pedro, o Estado até pode dar condições para as pessoas viverem com dignidade, e concordo que se deva focar nisso, mas acontece que há momentos e doenças cujo fim, por mais que se queira, é tudo menos digno e, nessas alturas, indigno é obrigar alguém a ficar agarrado a um sofrimento atroz apenas por ideologia e crença religiosa. E já agora, o mesmo acontece em relação ao aborto, cuja despenalização o Dr. Pedro em tempos defendeu. O ideal é todas as mulheres terem condições para conseguirem ter e criar um filho com dignidade; o ideal é nenhuma mulher ser abusada, sobretudo dentro de uma relação, e engravidar contra a sua vontade; o ideal é a pílula ser 100% eficaz e o preservativo 100% infalível. Infelizmente, não vivemos num mundo ideal.

O Dr. António, perdão, Pedro, também disse que as pessoas estão desiludidas com expressões radicais do ponto de vista social, do ponto de vista ideológico, que se tentou fazer valer a partir de uma posição de força parlamentar, pessoas que deram um sinal muito claro nas últimas eleições de que estão cansadas disso. Desculpe, doutor, mas acho que as pessoas estão cansadas é de chegarem ao fim do mês sem dinheiro, ou de terem de investir as suas economias em escolas e hospitais privados, porque os públicos não lhes dão resposta, ou de verem o país a ser constantemente ultrapassado em todos os indicadores económicos, ou de terem de emigrar para conseguirem sair de casa dos pais. Expressões radicais do ponto de vista social e ideológico são as de alguns autores do livro, ao defenderem que o papel mais importante que uma mulher pode desempenhar na sociedade é ser mãe (de preferência ficando em casa a cuidar do lar).

Por fim, claro, o doutor teve de falar da sua religião, dizendo que tem de haver espaço para todos. Agora, para haver espaço para todos não se pode impedir 70% ou 80% das pessoas que comungam uma religião de terem vergonha de a poderem praticar e de poderem reconhecer a importância central que ela tem. Pois é, eu também fui criada no seio do catolicismo (embora, felizmente, me tenha curado disso por volta dos 14 anos) e devo dizer que a única razão pela qual as pessoas possam, por vezes, ter vergonha de admitir que são Católicas é estarem conscientes dos escândalos sexuais e dos abusos que os seus representantes máximos levaram a cabo ou esconderam durante séculos e séculos e séculos.

Agora ide todos de volta para os vossos sarcófagos ou, pelo menos, sacudi a naftalina que emana dessas cabeças quadradas e fechadas, saudosistas dos tempos que, felizmente, já se foram há 50 anos.

Amén.

One thought on “O regresso das múmias

  1. Concordo em pleno.

    O problema é que há muitos Antónios e muitos Pedros a pensar da mesma maneira. Mudar a mentalidade portuguesa deverá ser lá para 2100. Já não estarei cá para usufruir de uma mentalidade portuguesa aberta. Obrigada, Filipa, por começar agora a fazer esse trabalho.

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