Gostava de viver numa cidade sem carros. Como na minha infância, quando ia a pé para todo o lado. Uma cidade onde nas ruas se ouvissem os pássaros e os murmúrios e as campainhas das bicicletas. Onde as pessoas não tivessem de levar sempre o seu veículo até à porta, estacionando em cima dos passeios, indiferentes aos peões. Existem muitas cidades assim por toda a Europa. Curiosamente, estive em duas delas este ano. Amesterdão e Sevilha.
Na primeira, famosa pela tradição da bicicleta, sentarmo-nos numa esplanada no centro da cidade é como estar numa pequena vila. É quase estranho não se ouvir um motor. A cidade é servida por um eléctrico, o comboio e, claro, muitas ciclovias. Também existem motas e carros, obviamente, mas a maioria das pessoas desloca-se assim. O metro de superfície, ou “Tram”, como lhe chamam, é frequente, amplo, rápido, e incomparavelmente mais ecológico do que os autocarros que andam desengonçados e barulhentos pelas ruas das nossas cidades. Gostava de ver Lisboa com todas faixas de BUS transformadas em vias para o elétrico, que assim se poderia estender a toda a cidade.
Na segunda, Sevilha, também há um eléctrico a atravessar o centro histórico, que está quase todo interdito a carros. Há algumas ruas paralelas onde os carros podem passar, mas grande parte do coração da cidade está livre de trânsito. Passear na zona das lojas é como estar num centro comercial ao ar livre, cheio de gente e de vida. As ruas dos monumentos fervilham com movimento. Não há lojas fechadas, as esplanadas estão compostas e só se ouvem as vozes e o flamenco.
Além da preservação do ambiente, há muitas vantagens em termos cidades sem carros:
– Melhoria da qualidade do ar: a poluição é responsável por cerca de 4,2 milhões de mortes por ano devido a doenças respiratórias crónicas, cancro do pulmão e AVC.
– Drástica diminuição da poluição sonora, que provoca ansiedade, déficit de atenção, perda de memória, distúrbios de sono e dores de cabeça.
– Mais qualidade de vida para as pessoas com mobilidade reduzida, que tantas vezes dependem dos outros transeuntes para atravessarem uma estrada em segurança.
– Mais crianças a brincarem na rua ou a irem a pé para a escola.
– Valorização do comércio local, com o impacto que isso tem na economia e emprego.
– Uma população mais activa e saudável, já que andar a pé melhora o funcionamento dos aparelhos circulatório e respiratório, ajuda na prevenção de doenças cardiovasculares, reduz os níveis de colesterol, mantém a flexibilidade das articulações e aumenta a resistência dos ossos, ajudando assim a prevenir doenças como a osteoporose.
O problema é que, em Portugal, se começa sempre pelo fim. Muitas vezes fecham-se as ruas ao trânsito, mas não se colocam mais transportes públicos a circular, nem se criam parques de estacionamento nas entradas das cidades para quem vem de mais longe, nem se resolvem os problemas nas empresas de transportes que fazem greves uma vez por mês, nem se dão alternativas às pessoas que não vivem ao lado de uma estação de metro. Por exemplo, no que toca a Lisboa, as bicicletas GIRA, uma óptima alternativa ou complementaridade aos transportes públicos, apenas existem nas zonas turísticas da cidade. Do Terminal de Cruzeiros à Marina do Parque das Nações não há uma única estação. Estão a criar um Hub criativo no Beato, estão a aparecer cada vez mais empresas em Marvila, mas bicicletas, nem vê-las. As zonas onde ainda vivem os lisboetas, e que ainda não estão minadas de alojamento local, não têm bicicletas disponíveis. Encarnação, Beato, Marvila, Olaias, Chelas, Penha de França, Alto de São João, Xabregas, Madragoa, Campo de Ourique, Infante Santo, Estrela, Ajuda, Restelo e Alta de Lisboa. Nada. Só autocarros.
Por falar em autocarros, no outro dia decidi experimentar ir da Encarnação até ao Campo das Cebolas. Demorei cinquenta minutos e nem sequer era hora de ponta. De metro, nunca menos de quarenta entre mudanças de linha e partes do percurso a pé. De carro, porta a porta, no máximo, vinte minutos. Não estamos a falar de uma diferença pequena. Qual o incentivo para deixar o carro, para quem pode suportar os custos?
Há quem diga que, quando não se tem alternativa, as pessoas usam o transporte público e pronto. Fecham-se ruas ao trânsito, aumentam-se os preços dos parquímetros e cada um que se desenrasque. Para mim, essa não é a solução. Enquanto ambientalista convicta, também adorava que se fechassem ao trânsito muitas mais ruas. Toda a baixa, incluindo a Avenida da Liberdade. Adorava voltar a andar de bicicleta para todo o lado, eu que durante anos levei desse modo os meus filhos pequenos para o infantário, num atrelado, fizesse chuva ou sol. Porém, enquanto utente dos transportes públicos, sei que ainda há um longo caminho a percorrer por parte de quem os gere e decide onde investir. Um caminho que deve começar sem batota nem medidas populistas para ficar bem na fotografia. Do início.