Bom dia , meu amor

Assim que abria os olhos, só lhe apetecia chorar, incrédula perante os algarismos que surgiam no ecrã do despertador. Seis e cinquenta. Não, não podia ser, se ainda há pouco se deitara, se o corpo ainda pedia descanso, se ainda agora tinha adormecido. Seis e cinquenta, gritavam os algarismos, indiferentes. É assim mesmo, o tempo, indiferente àquilo que nos dá jeito, implacável na sua pontualidade. Sentia, então, nascida das profundezas do seu ser, uma incomensurável vontade de esmurrar o despertador e o senhor que se deitava todas as noites a seu lado. Um senhor que jurara «amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença», mas, Deus Nosso Senhor que lhe perdoasse, nunca fora mencionado «nas infindáveis noites mal dormidas».

Houve um tempo em que lhe chamara «querido», «amor», «meu bem». Um tempo muito longínquo, que a cada dia se assemelhava mais a um sonho. Um tempo em que acordava e se aninhava nele, em que o toque da sua pele lhe provocava algum desejo, em que faziam amor. Agora, o único desejo que tinha quando o apanhava numa cama era o de o matar, e a única coisa que lhe ocorria chamar-lhe, ao deparar-se com o seu rosto flácido esborrachado contra a almofada, era animal. «Bom dia, animal, dormiste bem? É que eu não». E ele, de olhos arregalados perante a sua petulância, e ela, segura e decidida, a enfrentá-lo, a obrigá-lo a comparecer a uma das inúmeras consultas de roncopatia que já lhe tinha marcado, mas da quais ele fugia a sete pés, afirmando que todos os homens ressonam, é assim a vida, ponto final. «É assim, mas vai deixar de ser», era o que ela deveria ripostar, altiva, intransigente. Porém, sabia que jamais teria coragem para tal. Não se lhe podia dizer nada sobre o assunto, que o senhor ficava intratável. Absolutamente intratável. Mais ainda do que em todos os outros dias, em que rosnava em vez de falar e olhava para toda a gente como se estivesse zangado, o sobrolho levantado, duas rugas profundas entre as sobrancelhas. O que explicava também a ausência de vida social. Nenhum dos amigos do casal tinha paciência para o mau humor de Joaquim. Manuela não se lembrava da última vez que tinham sido convidados para um almoço ou jantar.

Não era por ela que evitava alimentar a fúria do marido. Era pelos filhos. E era também por eles que Manuela, todas as manhãs, engolia os seus instintos homicidas com um copo de água e punha um sorriso na cara. As crianças não tinham culpa de nada. Nem as suas, nem as que todas as manhãs se sentavam nas pequenas secretárias a ouvi-la. As crianças não pediram para nascer e já sofriam bastante com o distanciamento que o pai impunha com o seu constante mau humor. «Pouco barulho», «saiam daqui», «não me chateiem», eram as expressões mais ouvidas lá por casa há vários anos. Anos durante os quais Manuela fizera o papel de mãe e de pai. Fora ela quem ensinara os filhos a andar de bicicleta, a nadar, a jogar à bola…Tardes infindáveis no parque, lutando contra o cansaço e as vozes que lhe diziam vai para casa, que tens de mudar as camas, vai para casa, que tens de fazer uma panela de sopa, vai para casa, que já há cotão atrás das portas. Mas as crianças precisavam de brincar e de subir às árvores e o Miguel não tinha um irmão para jogar com ele, apenas uma irmã, que fugia de bolas a sete pés. Então, lá ia Manuela, defender os remates do gaiato, atirando-se para a relva como um jogador profissional, ganhando forças através dos sorrisos e dos gritos de vitória do filho. E o senhor, ora no sofá estendido, ora no sofá esticado. Só ela não tinha tempo para se esticar em nenhum lado.

Em certos dias, quando o corrector de olheiras não conseguia disfarçar as manchas negras sob os olhos e a pálpebra esquerda não parava de tremer, Manuela tentava lembrar-se da última vez que tinha dormido uma noite descansada. Tinha a vaga ideia de como era acordar com energia e vontade de enfrentar o novo dia, mas era mesmo muito vaga. Pensando bem, desde que fora mãe, há treze anos, portanto, nunca mais dormira como devia ser. Talvez umas noites quando passava férias na terra com os miúdos, ou quando ele ia em alguma viagem de negócios (coisa cada vez mais rara, infelizmente), contudo, nunca as noites suficientes para atenuar o seu nível de exaustão. Primeiro, não dormira por causa do choro do bebé; depois, por causa das viroses e dos pesadelos; depois, por causa da gravidez da Cátia, e outra vez o choro, e as viroses, e os pesadelos… Agora, que as crianças estavam mais crescidas e menos dependentes dela, não dormia por causa do ressonar do marido!  Sempre sonhara ter três filhos, mas hoje tinha a certeza de que, se tivesse tido outro bebé, não iria aguentar. Aliás, na maior parte dos dias, espantava-se com o facto de continuar funcional, apesar de nunca dormir mais do que três ou quatro horas seguidas. Não admirava que o cabelo se tivesse coberto de branco tão prematuramente. Parecia ter bem mais do que os seus trinta e oito anos, e até já lhe acontecera andar com a mãe na rua e pensarem que eram irmãs.

Se os constantes despertares nocturnos aconteciam apenas uma ou duas vezes por semana, até se aguentava bem. Mas quando se sucediam por várias noites seguidas, ficava completamente arrasada. Tinha dores de cabeça, tonturas, intolerância aos sons mais altos e uma sonolência que não a abandonava todo o santo dia, por mais cafés que bebesse, e que a abatia sobretudo depois do almoço. Já dera por si a lançar água fria na cara e a fazer flexões no chão da casa de banho da escola. Ouvira dizer que o exercício físico ajudava a dar energia e as breves pausas durante o horário lectivo eram as únicas que tinha para o praticar. Dez flexões bem feitas, de pernas esticadas e tudo. Nada mal para uma mulher quase nos quarenta, dizia para si própria, enquanto lavava as mãos, evitando o reflexo que o espelho lhe devolvia. Isso e o constante correr para conseguir apanhar o comboio, já podia ser considerado fazer exercício, não? Só que, num belo dia, o inevitável aconteceu. Manuela estava tão cansada, mas tão cansada, que não tinha energia sequer para falar, decidindo, por isso, pôr os alunos a verem um filme logo à primeira hora.  Adormeceu em plena sala de aula ao fim de poucos minutos, o que, se virmos bem, não foi assim tão estranho: as persianas corridas, os alunos em silêncio, o casaco de malha pelas costas, o lugar ao fundo da sala… Ainda o filme estava no genérico inicial, já Manuela sentia uma enorme dificuldade em focar as imagens, dificuldade essa que logo se transformou num cerrar das pálpebras e num lento tombar da cabeça sobre os braços. Ao princípio, as crianças nem sequer se aperceberam do sucedido. Estavam tão concentradas no filme, que nenhuma delas se lembrou de olhar para a fila de trás. Quando este terminou, porém, estranharam que a professora não tivesse acendido a luz de imediato, evitando a excitação que dominava a sala sempre que se distraía e deixava que a música final se fizesse ouvir. Era sempre um alvoroço, com as vinte e cinco crianças aos pulos, algumas em cima das mesas, a exibirem umas às outras frenéticos passos de dança. Se o filme fosse o Madagáscar, então, era mesmo um pandemónio. Mas não disseram nada, claro. Dançaram e pularam e gritaram, até ao último segundo, quando o ecrã ficou a negro e a música chegou ao fim. Foi nessa altura que uma das crianças decidiu acender a luz e todos deram com a professora abatida sobre a mesa.

Uns entraram em histeria, gritando a plenos pulmões, outros tentaram acordar Manuela dando-lhe valentes safanões, mas a verdade é que ela parecia estar morta. Antes de terem tempo de correr para fora da sala para chamar um adulto, já a auxiliar estava na sala e a directora da escola a caminho, que isto de gritos de crianças é coisa que facilmente atravessa várias paredes e andares. Endireitaram Manuela na cadeira e deram-lhe palmadinhas no rosto, sem obter qualquer reacção. Tentando manter a presença de espírito, a directora pôs os seus óculos em frente do nariz de Manuela e suspirou de alívio ao ver que a lente ficou embaciada, sinal de que respirava. Tomou-lhe o pulso, que revelava batimentos cardíacos normais, setenta e cinco batimentos por minuto e, por fim, chamou o INEM. Nem dez minutos passaram até que Manuela partisse na ambulância amarela, perante os olhares assustados das crianças e a apreensão geral dos adultos. Que raio de fanico lhe teria dado?

Excerto do conto publicado na coletânea O Sono Delas (Cultura, 2024), com cinco contos baseados em casos clínicos reais de distúrbios do sono na mulher.

Já à venda.

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