Aconchego

Os meus bebés estão demasiado crescidos, mas ainda me pedem para ir deitá-los. Não se contentam com o aconchego dos lençóis e um beijinho. Tenho de me estender a seu lado, passear os dedos pelos seus cabelos, roçar a minha bochecha nas suas e despedir-me de cada um dos peluches que ainda lhes fazem companhia. Começo por um quarto, depois passo para o outro e, no corredor a caminho da sala, ainda tenho de responder a mais alguns “boa noite”. É um ritual sagrado, excepto nos dias em que a paciência se esvai mais cedo, após o décimo quarto pedido para lavarem os dentes, ou para desligarem a televisão, ou para não implicarem um com o outro.

Todas as noites, enquanto os embalo, embora já não me caibam no colo, peço à memória que guarde cada um daqueles minutos, porque sei que em breve, sem aviso nem alarde, deixarão de acontecer. Um dia, sem que eu dê por isso, irão para o quarto sozinhos depois do jantar, ansiosos por se soltarem do fio invisível que nos une, gritarão um “boa noite” enfadado e, com sorte, talvez se obriguem a dar-me um beijo fugidio. Um dia, sem que eu dê por isso, os seus quartos estarão vazios, o fio invisível cada vez mais esticado, por sei lá quantos quilómetros, e o corredor a caminho da sala invadido de silêncio.

E não interessa quantas noites tenha tido o privilégio de aconchegá-los; serão sempre de menos. Não interessa quantos beijos lhes tenha dado; serão sempre poucos. Não interessa quão presente tenha estado em cada um daqueles momentos; serão sempre memórias. Por mais que me agarre a elas, os meus bebés estarão demasiado crescidos e aquelas noites não voltarão.

Ser mãe é tê-los mais longe a cada dia e fingir que está tudo bem.

© Bernardo Carvalho in Coração de Mãe, com Isabel Minhós

O regresso das múmias

Saiu recentemente um livro de ensaios sobre a família e o seu papel na sociedade, que já vem com traças e tudo. Um livro que, aparentemente, visa traçar um perfil ético da vida em sociedade com textos de várias personalidades ligadas à direita conservadora e/ou à Igreja. Começamos logo mal, não é? Para traçar um perfil ético da vida em sociedade seria interessante ver o que pessoas de outros quadrantes políticos e religiosos têm a dizer sobre o assunto.

O livro foi apresentado por um ex-primeiro ministro que está mortinho para voltar a ter relevância política, nem que para isso tenha de se juntar ao partido do seu mais entusiasta discípulo. No discurso de apresentação disse coisas incríveis e verdadeiras, tais como: às vezes há a impressão de que as pessoas andam à procura de sarna para se coçarem e que querem criar falsos problemas onde eles não existem e isso, às vezes, é utilizado para não resolver os que existem e não a discutir os que existem. Não podia concordar mais. É precisamente isso que o livro veio fazer: falar de coisas que não são um problema. Um problema é não haver casas, escolas, médicos de família, salários dignos. Aliás, eu acho até que as famílias estão cada vez mais unidas, porque, mesmo que quisessem, os filhos não conseguem deixar a casa dos pais e os pais não conseguem pagar as contas sem a ajuda dos filhos.

Depois, assim do nada, o senhor António de Oliveira, perdão, Passos Coelho, questionou por que razão as políticas públicas pretendem ajudar as pessoas a morrer em vez de lhes dar condições para que elas possam viver com dignidade humana? Ora, Dr. Pedro, o Estado até pode dar condições para as pessoas viverem com dignidade, e concordo que se deva focar nisso, mas acontece que há momentos e doenças cujo fim, por mais que se queira, é tudo menos digno e, nessas alturas, indigno é obrigar alguém a ficar agarrado a um sofrimento atroz apenas por ideologia e crença religiosa. E já agora, o mesmo acontece em relação ao aborto, cuja despenalização o Dr. Pedro em tempos defendeu. O ideal é todas as mulheres terem condições para conseguirem ter e criar um filho com dignidade; o ideal é nenhuma mulher ser abusada, sobretudo dentro de uma relação, e engravidar contra a sua vontade; o ideal é a pílula ser 100% eficaz e o preservativo 100% infalível. Infelizmente, não vivemos num mundo ideal.

O Dr. António, perdão, Pedro, também disse que as pessoas estão desiludidas com expressões radicais do ponto de vista social, do ponto de vista ideológico, que se tentou fazer valer a partir de uma posição de força parlamentar, pessoas que deram um sinal muito claro nas últimas eleições de que estão cansadas disso. Desculpe, doutor, mas acho que as pessoas estão cansadas é de chegarem ao fim do mês sem dinheiro, ou de terem de investir as suas economias em escolas e hospitais privados, porque os públicos não lhes dão resposta, ou de verem o país a ser constantemente ultrapassado em todos os indicadores económicos, ou de terem de emigrar para conseguirem sair de casa dos pais. Expressões radicais do ponto de vista social e ideológico são as de alguns autores do livro, ao defenderem que o papel mais importante que uma mulher pode desempenhar na sociedade é ser mãe (de preferência ficando em casa a cuidar do lar).

Por fim, claro, o doutor teve de falar da sua religião, dizendo que tem de haver espaço para todos. Agora, para haver espaço para todos não se pode impedir 70% ou 80% das pessoas que comungam uma religião de terem vergonha de a poderem praticar e de poderem reconhecer a importância central que ela tem. Pois é, eu também fui criada no seio do catolicismo (embora, felizmente, me tenha curado disso por volta dos 14 anos) e devo dizer que a única razão pela qual as pessoas possam, por vezes, ter vergonha de admitir que são Católicas é estarem conscientes dos escândalos sexuais e dos abusos que os seus representantes máximos levaram a cabo ou esconderam durante séculos e séculos e séculos.

Agora ide todos de volta para os vossos sarcófagos ou, pelo menos, sacudi a naftalina que emana dessas cabeças quadradas e fechadas, saudosistas dos tempos que, felizmente, já se foram há 50 anos.

Amén.

Bom dia , meu amor

Assim que abria os olhos, só lhe apetecia chorar, incrédula perante os algarismos que surgiam no ecrã do despertador. Seis e cinquenta. Não, não podia ser, se ainda há pouco se deitara, se o corpo ainda pedia descanso, se ainda agora tinha adormecido. Seis e cinquenta, gritavam os algarismos, indiferentes. É assim mesmo, o tempo, indiferente àquilo que nos dá jeito, implacável na sua pontualidade. Sentia, então, nascida das profundezas do seu ser, uma incomensurável vontade de esmurrar o despertador e o senhor que se deitava todas as noites a seu lado. Um senhor que jurara «amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença», mas, Deus Nosso Senhor que lhe perdoasse, nunca fora mencionado «nas infindáveis noites mal dormidas».

Houve um tempo em que lhe chamara «querido», «amor», «meu bem». Um tempo muito longínquo, que a cada dia se assemelhava mais a um sonho. Um tempo em que acordava e se aninhava nele, em que o toque da sua pele lhe provocava algum desejo, em que faziam amor. Agora, o único desejo que tinha quando o apanhava numa cama era o de o matar, e a única coisa que lhe ocorria chamar-lhe, ao deparar-se com o seu rosto flácido esborrachado contra a almofada, era animal. «Bom dia, animal, dormiste bem? É que eu não». E ele, de olhos arregalados perante a sua petulância, e ela, segura e decidida, a enfrentá-lo, a obrigá-lo a comparecer a uma das inúmeras consultas de roncopatia que já lhe tinha marcado, mas da quais ele fugia a sete pés, afirmando que todos os homens ressonam, é assim a vida, ponto final. «É assim, mas vai deixar de ser», era o que ela deveria ripostar, altiva, intransigente. Porém, sabia que jamais teria coragem para tal. Não se lhe podia dizer nada sobre o assunto, que o senhor ficava intratável. Absolutamente intratável. Mais ainda do que em todos os outros dias, em que rosnava em vez de falar e olhava para toda a gente como se estivesse zangado, o sobrolho levantado, duas rugas profundas entre as sobrancelhas. O que explicava também a ausência de vida social. Nenhum dos amigos do casal tinha paciência para o mau humor de Joaquim. Manuela não se lembrava da última vez que tinham sido convidados para um almoço ou jantar.

Não era por ela que evitava alimentar a fúria do marido. Era pelos filhos. E era também por eles que Manuela, todas as manhãs, engolia os seus instintos homicidas com um copo de água e punha um sorriso na cara. As crianças não tinham culpa de nada. Nem as suas, nem as que todas as manhãs se sentavam nas pequenas secretárias a ouvi-la. As crianças não pediram para nascer e já sofriam bastante com o distanciamento que o pai impunha com o seu constante mau humor. «Pouco barulho», «saiam daqui», «não me chateiem», eram as expressões mais ouvidas lá por casa há vários anos. Anos durante os quais Manuela fizera o papel de mãe e de pai. Fora ela quem ensinara os filhos a andar de bicicleta, a nadar, a jogar à bola…Tardes infindáveis no parque, lutando contra o cansaço e as vozes que lhe diziam vai para casa, que tens de mudar as camas, vai para casa, que tens de fazer uma panela de sopa, vai para casa, que já há cotão atrás das portas. Mas as crianças precisavam de brincar e de subir às árvores e o Miguel não tinha um irmão para jogar com ele, apenas uma irmã, que fugia de bolas a sete pés. Então, lá ia Manuela, defender os remates do gaiato, atirando-se para a relva como um jogador profissional, ganhando forças através dos sorrisos e dos gritos de vitória do filho. E o senhor, ora no sofá estendido, ora no sofá esticado. Só ela não tinha tempo para se esticar em nenhum lado.

Em certos dias, quando o corrector de olheiras não conseguia disfarçar as manchas negras sob os olhos e a pálpebra esquerda não parava de tremer, Manuela tentava lembrar-se da última vez que tinha dormido uma noite descansada. Tinha a vaga ideia de como era acordar com energia e vontade de enfrentar o novo dia, mas era mesmo muito vaga. Pensando bem, desde que fora mãe, há treze anos, portanto, nunca mais dormira como devia ser. Talvez umas noites quando passava férias na terra com os miúdos, ou quando ele ia em alguma viagem de negócios (coisa cada vez mais rara, infelizmente), contudo, nunca as noites suficientes para atenuar o seu nível de exaustão. Primeiro, não dormira por causa do choro do bebé; depois, por causa das viroses e dos pesadelos; depois, por causa da gravidez da Cátia, e outra vez o choro, e as viroses, e os pesadelos… Agora, que as crianças estavam mais crescidas e menos dependentes dela, não dormia por causa do ressonar do marido!  Sempre sonhara ter três filhos, mas hoje tinha a certeza de que, se tivesse tido outro bebé, não iria aguentar. Aliás, na maior parte dos dias, espantava-se com o facto de continuar funcional, apesar de nunca dormir mais do que três ou quatro horas seguidas. Não admirava que o cabelo se tivesse coberto de branco tão prematuramente. Parecia ter bem mais do que os seus trinta e oito anos, e até já lhe acontecera andar com a mãe na rua e pensarem que eram irmãs.

Se os constantes despertares nocturnos aconteciam apenas uma ou duas vezes por semana, até se aguentava bem. Mas quando se sucediam por várias noites seguidas, ficava completamente arrasada. Tinha dores de cabeça, tonturas, intolerância aos sons mais altos e uma sonolência que não a abandonava todo o santo dia, por mais cafés que bebesse, e que a abatia sobretudo depois do almoço. Já dera por si a lançar água fria na cara e a fazer flexões no chão da casa de banho da escola. Ouvira dizer que o exercício físico ajudava a dar energia e as breves pausas durante o horário lectivo eram as únicas que tinha para o praticar. Dez flexões bem feitas, de pernas esticadas e tudo. Nada mal para uma mulher quase nos quarenta, dizia para si própria, enquanto lavava as mãos, evitando o reflexo que o espelho lhe devolvia. Isso e o constante correr para conseguir apanhar o comboio, já podia ser considerado fazer exercício, não? Só que, num belo dia, o inevitável aconteceu. Manuela estava tão cansada, mas tão cansada, que não tinha energia sequer para falar, decidindo, por isso, pôr os alunos a verem um filme logo à primeira hora.  Adormeceu em plena sala de aula ao fim de poucos minutos, o que, se virmos bem, não foi assim tão estranho: as persianas corridas, os alunos em silêncio, o casaco de malha pelas costas, o lugar ao fundo da sala… Ainda o filme estava no genérico inicial, já Manuela sentia uma enorme dificuldade em focar as imagens, dificuldade essa que logo se transformou num cerrar das pálpebras e num lento tombar da cabeça sobre os braços. Ao princípio, as crianças nem sequer se aperceberam do sucedido. Estavam tão concentradas no filme, que nenhuma delas se lembrou de olhar para a fila de trás. Quando este terminou, porém, estranharam que a professora não tivesse acendido a luz de imediato, evitando a excitação que dominava a sala sempre que se distraía e deixava que a música final se fizesse ouvir. Era sempre um alvoroço, com as vinte e cinco crianças aos pulos, algumas em cima das mesas, a exibirem umas às outras frenéticos passos de dança. Se o filme fosse o Madagáscar, então, era mesmo um pandemónio. Mas não disseram nada, claro. Dançaram e pularam e gritaram, até ao último segundo, quando o ecrã ficou a negro e a música chegou ao fim. Foi nessa altura que uma das crianças decidiu acender a luz e todos deram com a professora abatida sobre a mesa.

Uns entraram em histeria, gritando a plenos pulmões, outros tentaram acordar Manuela dando-lhe valentes safanões, mas a verdade é que ela parecia estar morta. Antes de terem tempo de correr para fora da sala para chamar um adulto, já a auxiliar estava na sala e a directora da escola a caminho, que isto de gritos de crianças é coisa que facilmente atravessa várias paredes e andares. Endireitaram Manuela na cadeira e deram-lhe palmadinhas no rosto, sem obter qualquer reacção. Tentando manter a presença de espírito, a directora pôs os seus óculos em frente do nariz de Manuela e suspirou de alívio ao ver que a lente ficou embaciada, sinal de que respirava. Tomou-lhe o pulso, que revelava batimentos cardíacos normais, setenta e cinco batimentos por minuto e, por fim, chamou o INEM. Nem dez minutos passaram até que Manuela partisse na ambulância amarela, perante os olhares assustados das crianças e a apreensão geral dos adultos. Que raio de fanico lhe teria dado?

Excerto do conto publicado na coletânea O Sono Delas (Cultura, 2024), com cinco contos baseados em casos clínicos reais de distúrbios do sono na mulher.

Já à venda.

A culpa é de todos

A culpa é de todos

Ainda estamos todos um bocado em estado de choque com o resultado das eleições, não é? Ninguém assume que votou no Chega, mas ali estão eles, com 48 deputados e a terceira maior bancada parlamentar. Em setembro de 2020 alertei para os perigos de os subestimar, num artigo que continua demasiado actual.

Agora procuram-se culpados para o embaraço de ter um grupo de populistas, xenófobos e machistas na nossa Assembleia, e logo no ano em que se comemoram 50 anos de democracia. Já ouvi de tudo. A minha preferida é que a culpa é do Passos. Aliás, também foi uma expressão muito usada na campanha por parte de uma esquerda que não consegue assumir que fez parte do Governo em seis dos últimos oito anos. Que não consegue assumir que a culpa da ascensão dos populismos é de todos os que estiveram em lugares de poder e não resolveram os problemas das pessoas, preferindo lutar apenas e só pela sua agenda ideológica. À esquerda e à direita.

Temos um problema com a imigração, sim, e com minorias que não se conseguem integrar na sociedade, e com pessoas que morrem à espera de uma consulta, e com outras que ganham miseravelmente, mas que arranjam três empregos para conseguirem colocar os filhos em colégios privados, porque a escola pública não tem professores, ou auxiliares, ou telhados, ou os três ao mesmo tempo. Temos um problema de falta de água, sim, mas o governo aprova mais hectares de agricultura superintensiva e, no tempo em que aprova uma dessalinizadora para todo o Algarve, Espanha já tem 19 a funcionar. Temos um problema de transportes e de centralização gravíssimo, sim, cuja resolução (de que se fala há anos sem fim) poderia permitir que as pessoas vivessem fora das duas grandes cidades, com mais qualidade de vida e sem terem de perder três horas do seu dia em deslocações. Temos um problema grave de perda de poder de compra, sim, que é mascarado com o mito das contas certas, que é exatamente a mesma coisa que austeridade, mas com um nome mais socialista. Acima de tudo, temos um problema de mediocridade de quem nos governa, mais preocupados com a sua imagem e perpetuação no poder do que em resolver estes e outros problemas que afectam directamente o dia-a-dia dos portugueses.

Neste ponto lembro-me sempre de Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e Comunicações, e mais tarde Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que em pouco mais de oito anos criou os Bairros Sociais (Alvalade, Encarnação, Madre de Deus, Ajuda), a autoestrada Lisboa-Estádio Nacional, com o Viaduto Duarte Pacheco, a Marginal Lisboa-Cascais, o Aeroporto de Lisboa, a Estação Marítima de Alcântara, a Fonte Monumental da Alameda, o Estádio Nacional, e inúmeros outros empreendimentos, portos, instalações industriais, infraestruturas agrícolas e de saneamento, centrais hidro-elétricas e florestação (Parque de Monsanto).

Mas, credo, é melhor não elogiar muito, porque fazia parte do regime e ainda me apelidam de fascista só por estar a dá-lo como exemplo de alguém que soube fazer e planear obras estruturantes, enquanto este governo nem melhorar a ferrovia conseguiu.

Porque é a isto que estamos resumidos, não é? Ideologia. E essa é a verdadeira culpada.

As pessoas estão cansadas e sem esperança. Não querem saber de esquerda nem de direita. Querem apenas ver indivíduos competentes a gerir o dinheiro dos seus impostos e a garantir o funcionamento das coisas mais básicas: saúde, educação, habitação e segurança. E estão a marimbar-se se o hospital é público ou privado, desde que funcione e tenha as urgências abertas depois da meia-noite. Quando chegamos a este ponto de cansaço, é muito fácil acreditar na banha da cobra.

O Chega ganhou nos locais onde as populações se sentem abandonadas, onde nada acontece e os políticos só aparecem para uma inauguração; nas faixas etárias jovens, que crescem a ouvir que o melhor é irem embora, pois por aqui só há miséria, salários baixos e a impossibilidade de sair de casa dos pais. Não há um milhão de populistas, xenófobos, machistas. Há um milhão de pessoas completamente fartas de já nem sequer poderem sonhar.

Mulheres do Meu País

Portugal é um país cada vez mais pobre. A ilusão de pertencermos à elite europeia há muito se desvaneceu, sobretudo depois de um governo PS, que nos empurrou para as mãos da Troika e que persiste nas mesmas políticas que impedem o país de crescer. Nos dias que correm, tirando nos preços das casas e da hotelaria, estamos sempre nos últimos lugares de todas as tabelas.

Portugal é um país cada vez mais pobre. Os salários são baixos, a roçar o miserável, sendo o mínimo insuficiente para colocar comida na mesa, e o médio pouco acima dos mil euros. Aliás, no outro dia, o meu marido teve uma reunião de trabalho com alemães e quando lhes disse qual era o ordenado médio em Portugal eles acharam que se estava a referir ao valor por semana. Teria graça se não fosse tão trágico.

Sim, Portugal é um país cada vez mais pobre, e os mais pobres dos pobres continuam a ser as mulheres. Quase 70% das trabalhadoras ganham menos de mil euros brutos (por mês, senhores alemães!).  São elas que representam a maioria dos desempregados, a maioria que recebe apenas o salário mínimo e a maioria com vínculo de trabalho não permanente.

Os dados dos homens não são muito mais animadores (63% ganham menos de mil euros), mas as mulheres, como se sabe, além do emprego por conta de outrém, ainda têm aquele trabalho invisível que se chama cuidar da casa, dos filhos e dos pais. E, por isso, estão sempre mais sujeitas a variados tipo de abuso.

Abuso laboral. Por medo de perder o emprego, por mais precário que seja, as mulheres sujeitam-se aos horários excessivos, às más condições e, por vezes, ao assédio, não necessáriamente sexual, mas moral, que é igualmente devastador.

Abuso conjugal. Milhares de mulheres mantêm-se em relações tóxicas ou abusivas porque não têm para onde ir. Era algo que acontecia antigamente, quando não trabalhavam e dependiam financeiramente dos pais e depois dos maridos, mas que hoje, num tempo que se diz de liberdade, se perpetua. Uma mulher que ganhe menos de mil euros brutos, mesmo que queira sair de casa, sobretudo se tiver filhos e quiser levá-los consigo, não consegue. Tem de ficar e aguentar uma relação que, mesmo não sendo abusiva, não a faz feliz. Se há casais de classe média que não se falam, mas continuam a viver na mesma casa por motivos financeiros, o que será dos outros? É verdade que o direito ao divórcio está há muito consagrado. Porém, é um direito que se está a tornar um privilégio.

Abuso mental. Estas mulheres não podem estar bem. São pessoas que não têm tempo para nada, muito menos para si. Por muito que se apregoe a importância da saúde mental, são mulheres que não têm dinheiro para ginásios, massagens ou consultas de psicologia. Não têm uma hora para a leitura ou para caminhadas na natureza. Alimentam-se de sanduíches e pacotes de sumo, correm entre dois ou três empregos e dormem sempre mal.

Qual a repercussão destes abusos no corpo das mulheres? Que doenças evitáveis irão desenvolver? Que preço iremos pagar, enquanto Sociedade?

Custa-me aceitar que são estas as mulheres do meu país. Pelo menos, 70% das mulheres do meu país. Já não andam descalças, já não são analfabetas, já não morrem no parto, como nos tempos do registo corajoso de Maria Lamas que dá título a este artigo. No entanto, estão igualmente limitadas pela sua condição. Hoje é dia 8 de Março, Dia da Mulher. Lembremo-nos delas e do tanto que ainda há que fazer.

©Maria Lamas

Há que fazer-nos ao mar

«Há-que fazer-nos ao mar ou ficaremos cercados» diz o poema. Ficaremos pergunto? É que a meu ver, já estamos cercados e parece que poucos deram por isso.

Já estamos cercados, sim, pelo marasmo.

Os mais velhos trocaram as armas pelo queixume, deixando-se cair facilmente na nostalgia de gloriosos tempos passados. Tempos em que havia cantigas de intervenção e as sementes de revolta de que fala o poema que dá o mote a esta mesa.  «No meu tempo é que era bom!», dizem, esquecendo-se de que hoje, agora, é o seu tempo. Nenhum outro existe.

Os mais novos, que já nasceram em liberdade e que a dão por garantida, deixam-se iludir pelo mundo virtual onde saltitam impacientes entre vidas embelezadas com filtros, notícias falsas e conteúdos ao género fast-food: rápidos de consumir, vazios de substância. Tudo tem de ser já, acessível, resumido em poucas palavras, ou de preferência em imagens. Nada que exija mais de alguns minutos de concentração.

Já estamos cercados, sim, pelo conformismo.

Nada vai mudar. É assim, e assim será. Eles é que mandam, eles é que decidem. Eles, eles, eles, essa entidade onde depositamos o nosso futuro como se não tivéssemos escolha. O conformismo que se materializa em 50% de abstenção, quando não é mais. Faz-se um gosto, partilha-se um post solidário, puxa-se o assunto muito ao de leve no café, e fica por aí o nosso activismo, pois temos os nossos direitos salvaguardados. E são tantos que até já esquecemos quem lutou por eles e de como tão facilmente podem ser revertidos.

No entanto, parece que ninguém tem deveres. José Saramago já tinha alertado para isto aquando da entrega do Prémio Nobel de Literatura. «Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor», disse então. Ninguém fez caso. É muito chato ter deveres e obrigações para lá do nosso quintal.

Já estamos cercados, sim, pelo politicamento correcto e pela política de cancelamento de tudo o que não encaixa naquilo que alguns consideram o bom, o bem, o justo. Temos de pensar cinco vezes antes de falar, escrever ou publicar o que quer que seja. Artistas em auto-censura para não caírem em desgraça.

Tudo deve ser unidimensional, porque a ambiguidade pode levar a interpretações erradas. E temos de estar sempre dispostos a pedir desculpa por podermos vir a ofender alguma minoria que nem sequer sabíamos que existia. Se bem que convém não admitir esse desconhecimento, pois também ele é tremendamente ofensivo. Liberdade de expressão, mas com calma, que há coisas que não se podem sequer pensar. Bom, na dúvida, o melhor é mesmo não pensar.

Já estamos cercados, sim, por aqueles que acham que as mulheres estão a ir longe de mais. Os que se sentem ameaçados pela continua luta feminista, tentando minimizar a sua relevância nos dias que correm, como se não houvesse ainda tanto que fazer no caminho até à equidade. Os que que dizem já não haver discriminação. «Podem votar, podem abortar, podem até pilotar aviões, imagine-se! O que querem mais?»

Que engano… Não é por não sentirmos a discriminação na pele que ela deixa de existir. Seja de género, seja de raça, seja de que natureza for. E ela ainda se sente em todo o lado, mesmo que velada e subtil, mesmo que vestida de piada. Sente-se no mercado de trabalho, nos lugares de poder, e até na Literatura, onde se insiste em criar a sub-categoria da Literatura Feminina, diferente da outra, a verdadeira Literatura, a dos génios, homens, cis.

Já estamos cercados, sim, pela higienização da língua, que agora deve ser neutra e agradar a todos. Retirem-se do dicionário certas palavras vis! Gorda, preto, maricas, velha, deficiente. Apague-se tudo. Implementemos a novilíngua, com duas óbvias vantagens: poupamos no papel dos dicionários e nunca mais ninguém ficará ofendido.

Eu, pessoalmente, prefiro que as palavras me ofendam, me magoem, pois aí saberei que elas servem para alguma coisa, quem sabe até, para salvar a humanidade, com as frases de que nos falava Almada Negreiros e que já foram todas inventadas.

Contudo, para que tal aconteça, as palavras têm de sair desta sala, espalhar-se pelas ruas, ditas em voz alta, sem medo.

Palavras como ACORDAR.

Não nos deixemos intimidar por episódios da nossa história, que parecem irrepetíveis. Nem amedrontar por quem prefere um povo sereno, calado, anestesiado, profundamente adormecido.

Palavras como FAZER

Façamos, mesmo quando os críticos nos enxovalham, alegando que as novas gerações estão perdidas e não têm a capacidade para produzir nada de realmente original e disruptivo. Pois para mim, nos dias que correm, disruptivo é precisamente fazer. Fazer e errar, e tentar de novo, e errar outra vez.

Palavras como FALAR

Porque o mal alimenta-se do silêncio. Somos todos cúmplices quando ficamos calados, quando não intervimos perante uma injustiça, quando olhamos para o lado. E olhamos tantas vezes para o lado… perante um sem abrigo que nos estende a mão, perante um grupo de jovens que vandaliza um canteiro, perante as notícias de guerras e genocídios, perante a primavera que agora chega em fevereiro, perante o rapaz que aperta o braço da namorada com demasiada força, perante a colega que não foi promovida porque engravidou.

Shiu, que não é nada contigo. Shiiiiiiu não te metas em confusões. Olhos que não vêem, coração que não sente.

Já estamos cercados, sim. Os rios secaram, os caminhos fecharam-se e é tarde de mais para nos fazermos ao mar.  Estamos cercados por caixas onde nos querem arrumados, sossegados, empilhados, e sobretudo, quadrados.

E, no entanto, ainda há como fugir deste cerco. Olhem para cima! Sim, ainda podemos elevar-nos. Ascender. Construir uma escada humana para um lugar onde o coração sente, mesmo quando não vê. Um lugar onde não cabe o medo nem a resignação.

O céu é o novo mar. E o céu, como sabemos, é infinito. Por isso acordemos e façamos e falemos. Bem alto.

*texto produzido para a minha intervenção no Festival Literário Correntes d’Escritas, a partir de um verso da canção Erguem-se Muros de António Ferreira Guedes.

Podem ver aqui o vídeo da sessão completa, onde falaram também Afonso Cruz, Dany Wambire, Madalena Sá Fernandes e Marta Bernardes. Ou ler o resumo no artigo publicado pela CM Varzim.

Dia de São Valentim

(conto escrito para o Clube das Mulheres Escritoras)

Hoje não vou receber rosas. Nem bombons. Nem um jantar à luz das velas.

Também não vou encontrar uma carta de amor na caixa do correio, nem um mísero postal em tons de rosa e vermelho, com o interior já escrito para que o remetente não perca muito tempo a encontrar as palavras certas, como se houvesse palavras certas para dizer o que se sente.

Na verdade, não é só hoje. Nunca recebi uma carta de amor. Nem mesmo quando, nas aulas de inglês, havia a tradição estúpida de enviar cartas anónimas entre turmas. «Let’s celebrate Valentine’s Day», anunciava a teacher, inundando-nos durante uma semana com vocabulário da época. «Heart, diferente de art, atenção à pronúncia.». E nós a escrevermos My sweet Valentine, seguido de um chorrilho de lamechices cheias de erros ortográficos e declarações infantis. «E quem não quiser enviar?», perguntava eu, as mãos suadas, a vergonha a apertar-me as entranhas só de imaginar o que seria se o Samuel descobrisse que eu gostava dele. O Samuel era dois anos mais velho e jamais olharia para mim, uma gorda cheia de borbulhas na testa e cabelo oleoso, por mais que o lavasse. O Samuel namorava com uma das miúdas mais giras da escola, daquelas que parecem saídas da capa de uma revista mesmo quando vestem umas singelas calças de ganga e uma T-shirt branca. Eu tentava imitá-las, mas parecia sempre um trambolho, com os refegos pendurados na cintura e as mamas demasiado grandes, espalmadas pelo soutien demasiado pequeno. «Todos têm de enviar. Conta para a nota», respondia a teacher, com um sorriso que a mim me parecia maquiavélico, como se lhe desse prazer a nossa humilhação. Sinceramente, qual era a graça daquilo?

E o pior nem era escrever uma carta de amor em inglês para enviar a um miúdo qualquer, inventando uma caligrafia para que ninguém conseguisse descobrir quem era o remetente. O pior era quando, na aula seguinte, a teacher distribuía as cartas que a nossa turma tinha recebido. As meninas bonitas, encantadas, algumas recebendo mais de que uma. Corações de cartolina, papel perfumado, confettis… e o meu nome nunca era pronunciado.

Minto. Houve um ano em que recebi um poema:

Roses are red

Violets are blue

Whales are fat

And so are you.

Havia sempre algum engraçadinho que enfiava mensagens maldosas na caixa das cartas, sem que os professores se apercebessem. E nem assim alguém achou melhor acabar com a brincadeira.

Quero lá saber. Como disse Álvaro de Campos, «todas as cartas de amor são ridículas» e, nos dias que correm, décadas passadas sobre aqueles bancos de escola, o amor declara-se por mensagens de WhatsApp. Amor líquido*, que nos escapa entre os dedos. «Amo-te» e muitos emojis com corações e carinhas sorridentes a mandar beijinhos.

Suponho eu. Nunca ninguém disse que me amava. «Gosto de ti», ouvi muitos; «quero-te», também, sobretudo quando deixei os quilos a mais enterrados na adolescência, trazendo para a vida adulta apenas as boas mamas. Mas nunca um «amo-te». Será que só as mulheres bonitas o ouvem de vez em quando? Ou fui eu que fiz sempre as escolhas erradas?

Quero lá saber. Essa «chama que alenta e consome»** é uma invenção dos Românticos. Já está duzentos anos ultrapassada. Tal como este dia estúpido, com origens que remontam a mitos cristãos e pagãos, antigos e medievais, tudo misturado, capitalizado por uma americana que só queria vender postais. Espero que tenha morrido afogada em cartas, as pontas dos dedos cheias de cortes de papel.

Roses are red

Violets are blue

I hope you burn in Hell

And take this day with you.

©Banksy

*teoria do filósofo Zygmunt Bauman

**do poema Este inferno de amar, de Almeida Garret

(Leiam os outros textos inéditos de Célia Correia Loureiro e Rita da Nova aqui)

Considerações sobre a minha ausência

Dizem que Janeiro é o mês mais longo do ano, que demora demasiado tempo a passar, com os seus dias escuros, frios e introspectivos. Pois eu, confesso que nem dei por ele. Aliás, ia jurar que ainda ontem tinha andado por aqui a escrevinhar, quando a verdade é que não publico nada desde o Natal.

Porém, ainda que não tenha escrito nada aqui, vos garanto que passei horas a brincar com as palavras. O livro que terminei em Outubro regressou em Janeiro das mãos da minha editora, com as suas correcções e sugestões, o que me obrigou a voltar a mergulhar naquele mundo que estou desejosa de vos dar a conhecer. Escrevi mais três capítulos, voltei ao final que tinha pensado inicialmente e, agora, aguardo de novo, que isto de fazer um livro é literalmente como fazer um filho: uma gestação de muitos e longos meses. A minha intenção é que seja publicado em meados de Maio ou Junho, uma vez que o primeiro rascunho foi escrito em 2021 e estou em pulgas para que vos chegue às mãos. Mas a decisão não é minha, pelo que, mais uma vez, aguardemos.

Também estive a preparar coisas incríveis para o Clube das Mulheres Escritoras, que serão reveladas em Março, mês da mulher, pois então; e a escrever um conto para uma antologia que deverá sair na Primavera.

No meio de tudo isto, e porque recarregar baterias é essencial, fiz uma viagem a dois até à Costa Rica, destino há muito desejado. Posso adiantar que é um país incrível, de gente boa e paisagens deslumbrantes, onde aprendi a surfar, seguindo os ensinamentos da minha personagem Helena: se eu morrer amanhã, já sei a que sabe deslizar numa onda, rodeada de pelicanos e verde. Quem disse que não se pode começar um novo desporto aos quarenta e quatro?

Despeço-me com a promessa de vos escrever mais assiduamente.

Não desistam já de me visitar.

Feliz Natal, mãe (conto)

Este é o primeiro Natal sem ti, mãe. E no entanto, não consigo ficar triste.

Andava ansiosa com a chegada do dia 1 de dezembro, o dia em que transformavas a nossa casa num refúgio natalício. Dei por mim a evitar as montras, que começam a ser enfeitadas cada vez mais cedo, antecipando a época para lá dos limites aceitáveis. Tremia só de pensar que as canções que me aqueceram durante todos estes anos, poderiam levar-me às lagrimas de cada vez que as ouvisse na rádio ou nos altifalantes de um qualquer supermercado… Jurava que ia ter vontade de hibernar até ao ano seguinte. Porém, nada disso aconteceu.

As montras já estão adornadas e eu continuo a admirar cada uma delas, tirando ideias para decorar a nossa casa. Sinto-te ao meu lado, maravilhada perante os enfeites saídos de contos de fadas: globos de neve gigantes, comboios que circulam debaixo de uma árvore, bailarinas a fazerem as vezes das bolas nos ramos verdes. E eu, mãe, vamos embora; e tu, espera, olha só aquele anjinho. E eu a sorrir, então como agora.

As músicas já se fazem ouvir por todo o lado, mas, em vez de tapar os ouvidos, dou por mim a saltitar, como tu fazias, enquanto entoavas cada uma delas, inventando as partes das letras que não sabias de cor. Anos e anos a ouvires as mesmas músicas e enganavas-te sempre na mesma parte. E eu, “and if you ever saw it, you would even say it glows”; e tu a encolheres os ombros, como que dizendo que as letras são o menos importante numa canção de Natal.

As decorações já alegram a casa e não me impedem de sorrir. Fui à arrecadação buscar a árvore, as caixas com os enfeites, as luzes, seguindo as instruções de montagem que me davas, ano após ano, nos tempos em que vivia contigo. Primeiro, tens de aspirar a árvore e passar um pano molhado em cada um dos seus ramos. Depois, enrolas as luzes de cima para baixo, junto ao tronco. Só então, podes começar a colocar as bolas, bem espalhadas por toda a superfície, não podem ficar umas em cima das outras. A parte de trás da árvore também tem de estar bonita.

Embrulhei os presentes todos com papel igual, como tu fazias, um estilo diferente a cada ano. Umas vezes, papel liso, outras vezes, de fantasia, outras ainda, papel de jornal. As fitas a condizerem com os tons escolhidos, terminando em grandes laços atados com cuidado e precisão. Os nomes desenhados em letra manuscrita em cartões alegres, dependurados com cordão dourado. Azevinho falso colado na fita. Ou uma estrela. Ou uma rena de peluche, caso o presente fosse para uma criança. Este ano escolhi sombrinhas de chocolate para os pequenos. Ficaram bonitos os embrulhos, mas não tão bonitos como os teus. E eu que achava que já tinha aprendido; e tu a dizeres que estão maravilhosos. Juro que te ouvi ainda agora.

Este ano somos menos à mesa da consoada. Somos só nós os quatro, na verdade. Tu eras a cola que unia a família e, sem ti, os meus irmãos arranjaram desculpas para não vir. Que não me querem dar trabalho, que ninguém gosta assim tanto do bacalhau, que as passagens estão caras, que a família da mulher vai fazer uma grande festa, que o marido quer passar a quadra num lugar exótico, que sem ti nada disto faz sentido. Mas eu sei que faz, mãe! Eu sei que ficarias zangada se a casa não estivesse iluminada, se eu não pusesse o meu barrete vermelho, se não houvesse um calendário do advento com um chocolate e uma história em cada janelinha. Por isso, prometo que serei eu a guardiã das tradições, mesmo que sejamos apenas quatro, ou três, ou só eu, sozinha, um dia. Enquanto puder, esta será sempre uma época feliz, porque sei que estás aqui, mãe, em cada prato que me vejo aflita para cozinhar, em cada filhós que mordisco quando passo pelo aparador da sala, em cada casinha de gengibre que tento montar.

Tu lembras-te quando fizemos a primeira, mãe? E ela se desmoronou sob o peso do açúcar glacé, demasiado líquido e quente? E tu, muito calma perante o desastre e as lágrimas que estavam prestes a soltarem-se dos nossos pequeninos olhos, a dizeres que tinha sido uma partida dos duendes e que devíamos deixar a casinha desfeita, no centro da mesa, para que o Pai Natal a visse e os pusesse de castigo. E eu com pena dos duendes, que só queriam brincar. Lembras-te?

Este é o primeiro Natal sem ti, mãe, mas eu não sinto saudades, nem a mágoa de já não te poder abraçar. Sinto apenas o teu amor e a certeza de que estás espalhada por toda a casa, tal como estas decorações excessivas. Tal como o Pai Natal, que ninguém vê, mas que todos sabem que existe. E eu, já com treze anos, ó mãe, vá lá, pára de dizer que o Pai Natal existe; e tu, é claro que existe, para quem o quiser ver.

Olhem ali, crianças! O prato das bolachas que deixámos ontem à noite está vazio! Incrível! E as minhas crianças, mamã, estás a chorar? E eu, claro que não, isto não são lágrimas, são apenas flocos de neve do Pólo Norte, que o Pai Natal deixou no meu rosto.

Tu bem me dizias, mãe, ele vem sempre.

E tu também vieste. Agora entendo.

Obrigada, mãe.

@adobe stock

Lista de Natal

Chegou a minha época do ano preferida e, com ela, a lista dos livros que eu gostava de receber no sapatinho. Sei que são muitos e que pode parecer chato se toda a gente me oferecer um livro, mas acreditem que nós, livrólicos, não nos importamos. A sério, que não. Para nós, nunca há demasiados livros.

Autores Portugueses

As autoras do Clube das Mulheres Escritoras já li quase todas este ano, e as que não li, tenho os seus livros para ler, daí apenas uma figurar nesta lista. No entanto, aconselho vivamente que as descubram. Estou encantada e orgulhosa de tanto talento. Podem conhecê-las aqui ou subscrever a newsletter do clube e receber a cada 15 dias novidades e textos inéditos.

Autores Estrangeiros

Espero receber pelo menos alguns destes e espero que sirvam também de sugestões de leitura ou de presente. Não há que enganar: ofereçam livros!