A propósito do Acordo Ortográfico

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«As línguas tendem sempre a afastar-se e não a convergir (…) Nem este Acordo Ortográfico nem uma dúzia deles conseguiria travar a deriva em que Português Brasileiro e Português Europeu entraram. E entraram já há séculos, não é fenómeno recente. O que nos engana é que o utente brasileiro só no século XX se atreveu a desafiar, na escrita, as regras vigentes entre nós. Até então, simples exemplo, tentava pôr os pronomes, os clíticos, só nos lugares que a nossa norma aceita. Uma contorção de que felizmente já se livraram. Seja dito de passagem: nesta área, a da sintaxe, o nosso português acha-se mais próximo do galego que da norma brasileira, tão grande é já a deriva além-mar. O AO90 visava possibilitar um relatório, uma declaração, uniformes para todos os países de língua portuguesa. Visava, até, e aí já entramos no terreno da alucinação, conseguir a circulação de produtos linguísticos idênticos (traduções de literatura, legendagens, instruções de máquinas-de-lavar) por todas essas áreas do Planeta. Mas tenho de lhe tirar o chapéu ao dr. Malaca Casteleiro e seus próximos: foi com essa visão paradisíaca que convenceram os políticos. Claro que não existem, e jamais existirão, traduções literárias «luso-brasileiras», para por elas ficarmos. As próprias traduções clássicas de Frederico Lourenço levam uma lavagem sintáctica e pragmática quando editadas no Brasil. Não, o consumidor médio brasileiro, tal como o português, não está disposto a refastelar-se a ler um romance com os pronomes trocados e formas abstrusas de tratamento. O AO90, que ninguém pediu, foi um desperdício, e é hoje um pesadelo de que tenham a decência de nos despertar.»

Fernando Venâncio

(escritor, crítico literário e académico)

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