Vamos falar de sexo?

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As mulheres portuguesas não falam o suficiente sobre sexo. Se calhar as outras também não, mas não tenho conhecimento de causa. Não falam com as mães, não falam com as filhas, não falam com as amigas, por vezes falam com os médicos, mas apenas se lhes perguntarem. Estamos na terceira década do século XXI, já derrubámos vários preconceitos e fizémos inúmeras conquistas, mas o sexo ainda não é conversa que se tenha à mesa. Entre mulheres.

Já os homens, sentam-se com os amigos e, ainda antes do primeiro gole na cerveja dizem “ontem comi uma gaja muita boa”. E depois desenvolvem o tema detalhadamente. Falam do rabo dela, das mamas, das técnicas utilizadas e posições experimentadas. Com os devidos exageros, mas falam. As mulheres não. Quando muito dizem que tiveram um encontro e que o gajo era óptimo. Poucas são as que contam o que ele lhes fez e ainda menos as que falam sobre o que gostariam que lhes fizessem. Ou seja, o pouco que revelam acaba por ser meramente informativo, criando a ilusão de serem íntimas e liberais, enquanto que os verdadeiros desejos e temores continuam recalcados, renegando o principal objectivo do sexo: o prazer.

O incrível é que a mulher tem o único órgão que serve exclusivamente para o prazer: o clitóris. A palavra vem do grego Kleitorís, o que mostra que foram os gregos os primeiros a identificá-lo. Hipócrates, considerado o pai da Medicina, acreditava que a estimulação deste órgão tinha efeitos sobre a fertilidade. Sorte a das gregas, azar de todas as mulheres que nasceram depois da Antiguidade.  Durante séculos (à excepção de uns estudos de finais do século XVI), o clitóris foi ignorado, e só em 1998 a urologista Helen E. O’Connell começou a estudar a verdadeira anatomia deste órgão. As suas conclusões foram publicadas em 2005, incluindo a de que só o prepúcio do clitóris tem o dobro das terminações nervosas do pénis, mais concretamente oito mil.

O facto as mulheres portuguesas não falarem de sexo torna-se ainda mais estranho quando sabemos que elas gostam de sexo (Aleluia!). «Para a maioria das mulheres é mais importante a frequência com que atinge o orgasmo do que a frequência das relações sexuais. Além disso, muitas mulheres parecem sentir-se felizes com o companheiro se mantiverem relações sexuais uma ou duas vezes por semana», é uma das conclusões do estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos,  “As mulheres em Portugal, hoje”.  No mesmo estudo, um dos 4 pontos apontados como contributo para a infelicidade conjugal, é quando as relações sexuais não funcionarem como ela desejaria.

Então, se as mulheres portuguesas gostam de sexo e valorizam a vida sexual, se cerca de metade das que estão numa relação diz que o faz duas ou mais vezes por semana, se têm um órgão que só serve para o prazer, porque é que falar de sexo ainda não se tornou algo natural? Porque é que ainda há tanto conservadorismo no que toca às relações e às preferências sexuais? Possíveis respostas em baixo.

  1. Educação conservadora

Uma das razões que encontro tem que ver com a educação conservadora e machista que se dá às crianças. O endeusamento da virgindade e a preocupação constante com o que os outros pensam, levam à perpetuação da ideia de que o sexo livre é coisa de vadias e que as meninas se devem guardar o mais possível até encontrarem a pessoa certa. Mesmo que não seja para casar, a virgindade deve ser oferecida a alguém especial, com quem se tenha uma relação estável e duradoura. Porque o sexo é algo embaraçoso, que só serve para procriar e satisfazer o marido, Amén. Já os rapazes, quanto mais cedo iniciarem a vida sexual mais macho, quantas mais namoradas melhor, aproveita muito antes de casares, tem só cuidado para não engravidares ninguém.

Resultado: as meninas que se atrevem a ter experiências fora deste paradigma são rotuladas de “putas” e as outras fazem-no na mesma, mas às escondidas, com a agravante de, por não quererem que se saiba, deixarem de  fazer perguntas, de partilhar o que sentem, acabando muitas vezes por ter experiências traumáticas ou pouco satisfatórias (para não falar das doenças sexualmente transmissíveis e das gravidezes indesejadas). Eu sei que não estou a ficar mais nova, mas lembro-me nitidamente dos tempos de liceu em que havia sempre quatro ou cinco raparigas que eram olhadas de lado porque já tinham tido várias relações sexuais. Eram as “vacas”, que iam com todos, que tinham sido apanhadas na casa-de-banho ou no balneário dos rapazes, que já tinham feito um aborto clandestino, e o bulling ia por aí fora, Deus te livre de seres vista com elas. Eram apenas adolescentes a explorar a sua sexualidade. Mais curiosas e atrevidas do que a maioria, apenas isso.

Infelizmente, pelo que sei, em vinte e tal anos a coisa não mudou muito. Os tabus são os mesmos, o que faz com que, ao chegarem à vida adulta, as raparigas estejam cheias de dúvidas, e os rapazes se sintam à vontade para as separar entre as castas/para casar e as malucas/para curtir. E o melhor é nem falar de homossexualidade ou identidade de género, porque nesse campo ainda estamos na idade das trevas.

Em 2009 a educação sexual passou a ser obrigatória nas escolas, mas ao fim de dez anos o que acontece é que acaba por ser abordada no âmbito de disciplinas como Formação Cívica ou Área de Projecto, por professores constrangidos, sem formação adequada. Os temas abordados são vagos e raras vezes vão ao encontro do que os adolescente querem saber, como nos mostra esta peça do Jornal Publico. Era bom que a educação sexual fosse dada por sexólogos e que fosse uma disciplina obrigatória pelo menos a partir do 7º ano. Era bom que se falasse de sexo sem embaraço.

2. Desconhecimento do corpo

O que me leva para o segundo motivo para as mulheres falarem pouco de sexo: por embaraço e um profundo desconhecimento do seu próprio corpo. É engraçado que quando é para falar de assuntos “sérios”, como a gravidez e o parto, nenhuma mulher tem pudor em falar do seu pipi. Já quando é para falar de prazer, alto e pára o baile. E Deus nos livre de falar de masturbação. O quê? As mulheres fazem isso? Que horror!

Realmente é capaz de ser difícil falar de sexo e de prazer quando se desconhece o que está envolvido. Num estudo de 2016 de uma Universidade americana com 1.000 mulheres, 66% não sabiam identificar a vulva. Mesmo dando o desconto por serem americanas (o povo que vota no Trump), é um número ridiculamente alto. Não faço ideia quais seriam os números em Portugal, mas ao mesmo tempo pergunto-me quantas mulheres portuguesas terão alguma experimentado um vibrador? Um sugador de clitóris? Quantas já olharam para a vulva ao espelho? Não há nenhum homem que não observe diariamente o seu pénis, com vaidade, com orgulho, mas no caso das mulheres, quanto mais escondido e intocado melhor, como se fosse algo de que devêssemos ter vergonha.

Se não conhecermos bem o nosso corpo, se não tivermos auto-confiança, se não soubermos o que nos dá prazer, como obter prazer, aquilo que nos desperta o desejo, nunca saberemos dizê-lo aos nossos parceiros. E depois o sexo torna-se monótono, desinteressante, muitas vezes uma obrigação, um item na lista de afazeres domésticos. Pior: um prémio ou castigo para o parceiro consoante o seu comportamento. E aí, realmente, falar de sexo começa a ser desconfortável.

Dizê-lo aos nossos parceiros, não é só explicar como é que atingimos o orgasmo, é também ter o à-vontade para falar de fantasias. Há fantasias que podem ser só nossas, claro, mas há muitas outras que podem e devem ser partilhadas. Quem, sabe, até concretizadas, se todos estiverem de acordo, porque sexo e consentimento devem andar sempre de mãos dadas, nunca é de mais lembrar.

3. Elogio da Monogomia

O ser humano, por natureza, não é monogâmico. Não é. O príncipe e a princesa que se casaram e viveram felizes para sempre só existe nos contos de fadas. Tão real como unicórnios, dragões ou animais que falam. Todos os adultos sabem que não existem unicórnios, nem dragões e muito menos animais que falam, mas querem continuar a acreditar na monogamia.

«Não há fundamentos biológicos para a monogamia», explica Rui Diogo, especialista em biologia evolutiva e antropologia, investigador e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Howard. E diz mais: «na natureza nenhuma espécie é monogâmica, incluindo algumas apontadas como tal (algumas aves). As fêmeas dos chimpanzés, que se assemelham ao ser humano, relacionam-se com uma média de oito machos por mês». Partindo da biologia e da história, há estudos que indicam que 90% da comida era providenciada pela mulher no tempo dos humanos caçadores/recoletores, e que, com a agricultura e as religiões, surgiu a imposição da monogamia, mas apenas para a mulher. «Com a agricultura surge o conceito de propriedade. Os meus animais, a minha colheita. E surge a herança. Eu tenho que ter a certeza absoluta de que o filho é meu.» A Igreja, tantas vezes herdeira de fortunas quando não havia herdeiros nas famílias abastadas, teve um grande papel na difusão da ideia de monogamia. E no assassinato de milhares de mulheres na fogueira por crime de adultério, por vezes a pedido dos maridos que só se queriam ver livres delas.

De resto, é bem sabido que os casamentos nunca foram monogâmicos. Do povo à realeza, sempre houve amantes, incluindo das rainhas. O casamento era imposto, era um dever de Estado para conseguir alianças, o amor não era equacionado, e se estas rainhas queriam viver plenamente os seus amores e paixões a solução era encontrar amantes. Maria Antonieta de França, Rainha Vitória de Inglaterra, Catarina a Grande da Rússia, são apenas três exemplos.

O problema é que a ideia de monogamia condiciona até as fantasias. Para muitas mulheres, só ter determinados pensamentos já é um pecado, uma taradice, uma traição. E sem fantasia o sexo é extremamente aborrecido. Era importante que as mulheres portuguesas interiorizassem que entre a monogamia e o poliamor, há um largo espectro de possibilidades e todas elas são válidas desde que deixem os intervenientes felizes. Há mulheres que ficam com o mesmo homem até ao fim da vida, tendo uma vida sexual plena e muito satisfatória. Sim. Mas há outras que têm múltiplos casamentos e relações; outras que não gostam de compromissos; outras que têm amantes às escondidas e outras ainda amantes assumidos. Há relações a três, a quatro, cada um em sua casa, ou tudo ao molho e fé em Deus. E se se falasse mais de sexo, talvez todas estas combinações parecessem perfeitamente normais. O que, por sua vez, levaria a que fosse mais fácil falar de sexo.

Em conclusão, o que se faz no quarto apenas diz respeito a quem lá está, sem dúvida. Não se pretende com este texto incentivar o exibicionismo ou banalização do sexo. Porém, se investirmos na educação sexual séria e fundamentada, se as mulheres despertarem para o conhecimento do seu corpo e se deixarmos de considerar que uma relação normal só pode ser monogâmica e heterossexual, acredito que se torne mais natural falar de sexo, dentro do casal, no seio da família ou entre amigos. Sejamos homens ou mulheres, homossexuais, transgénero ou sem género. E quanto mais falarmos, mais aprenderemos, mais tabus cairão e mais prazer teremos. Por isso, senhoras, desempoeirem a cabeça e comecem a dar à língua. E se precisarem de um empurrão, aconselho a leitura do lindíssimo livro “O Prazer” de Maria Hesse. Um poderoso ponto de partida.

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