A minha cidade pequena

Da janela do quarto o meu olhar atravessa o rio.

É dia.

Do outro lado do imenso espelho que separa as duas margens, outras vezes revoltosa corrente, a minha cidade estende-se, lânguida. Os dedos esticados com moinhos nas pontas, os pés alicerçados no cimento fabril.

A minha cidade.  

Apesar de ali não viver há quase vinte anos, ainda a considero minha. Vejo-a como uma mãe galinha que não deixa de o ser quando os filhos abandonam o ninho. E, tal como esses filhos, cuja independência por vezes se confunde com ingratidão, posso passar meses sem lhe ligar nenhuma, mas a cada regresso sinto que estou em casa. Descubro-lhe novas rugas, uma roupa nova, um trejeito que antes não tinha, surpreendo-me com pormenores nos quais nunca tinha reparado. E no entanto, continuo a conhecer as ruas de cor e a caminhar sobre inúmeras memórias.

Houve um tempo em que o meu olhar fazia o sentido inverso. Sentada na muralha, enchendo os pulmões de maresia, ou sonhando acordada numa sala da Escola Alfredo da Silva, era Lisboa que me acenava, magnânima e exuberante. Nessa altura, sonhava mergulhar na capital, fugir da minha cidade pequena, onde não cabiam os meus sonhos e onde a minha fome de coisas novas nunca estava saciada. Ou assim o julgava. Hoje sei que, na verdade, os meus sonhos só eram possíveis porque tinha liberdade e essa fome foi o que alimentou a minha imaginação.

A minha cidade pequena.

Sim, é pequena, mas precisamente pela sua dimensão, permitia-me percorrê-la de uma ponta à outra, em total independência e segurança.  Quantas meninas de uma cidade grande podiam andar sozinhas na rua e ficar horas sentadas na muralha a escrever?

Andar e andar para todo o lado, até para ir ao cinema assistir a uma matiné, a sala cheia de adolescentes irrequietos, sempre vigiados por dois senhores carrancudos, que impediam beijos entre namorados e pipocas de voarem do balcão para a plateia. Também não era permitido fazer balões com a pastilha elástica nem conversar. Querem falar, vão lá para fora, que isto não é o café. A falta que fazem esses senhores nas salas de hoje…

Andar e andar para a escola, atravessando o parque na sua quietude matinal, excepto durante a época carnavalesca, altura em que se transformava num campo de batalha de balões de água, de tal severidade que, durante todo o mês de Fevereiro, preferia deslocar-me de autocarro. Perdia mais tempo à espera na paragem do que aquele que levaria fazer o percurso a pé, mas ao menos não chegava à escola a pingar.

Andar e andar nas noites de férias e de fim-de-semana, ponto de encontro o Barreirense, jantares de grupo na Cova Funda ou no Colega, as ruas do Barreiro Velho cheias. Bares, cafés, discotecas, bandos de miudagem por todo o lado. Toda a gente se conhecia, nem que fosse de vista, pelo que nunca ninguém se portava assim tão mal. Só queríamos dançar e parecer mais velhos, beber e fumar às escondidas, bater à porta da panificadora às tantas da manhã e comer um pão com chouriço quentinho antes de ir para casa.

Desses bandos, poucos são os que ainda lá moram e menos ainda os que por lá trabalham. As lojas de montras bonitas, que faziam com que fosse inútil fazer compras fora da cidade porque realmente havia de tudo por lá, foram sendo substituídas por lojas de chineses, serviços e cafés. Os bares e discotecas fecharam por falta de quem enchesse as suas pistas. No parque brincam menos crianças e já nem há patos para atirar pedacinhos de pão.

Não sei bem quando nem como, não estava lá para assistir, mas algures no tempo, uma geração deixou de ser substituída pela seguinte, como até então acontecia. O centro da cidade está agora adormecido nos braços de uma população mais pobre e envelhecida. E é uma pena, porque inversamente a esta tendência de perda de população, a cidade está cada vez mais bonita. Há arte urbana dos mais conceituados artistas a dar cor a fachadas e muros outrora cinzentos, uma “Avenida da Praia” que já não é só terra batida e lama junto à muralha, mas antes ciclovia e passeios alvos, passadiços junto aos moinhos onde apetece caminhar, mobiliário urbano moderno, rotundas e canteiros floridos e tanto mas tanto potencial.

Porém, de que serve uma cidade bonita se não tiver quem a viva? Sem pessoas não há histórias, e sem as histórias de cada um não se faz a história de uma cidade, nem se constrói a sua memória colectiva, aquela que vale a pena preservar porque nos une e nos dá uma inesgotável sensação de pertença. Por isso, hoje tomo este espaço como veículo para contar as histórias das pessoas anónimas que povoaram uma parte dos quinhentos anos da minha cidade pequena.

I.

No início eram pescadores.

Grupos que se foram fixando naquelas terras barrentas mas plenas de peixes e de sal.

É-me difícil imaginar a paisagem sem os moinhos, sem o comboio, sem as fábricas e, no entanto, esse tempo existiu. Como tudo existiu e existirá apesar da nossa existência.

Havia uma igreja dos tempos da reconquista, algumas casas e terrenos férteis para cultivar. Mais tarde, chegaram os fornos de biscoito do complexo Real de Vale de Zebro, os moinhos de maré e os estaleiros da Feitoria da Telha, trazendo com eles reis e navegadores para testemunharem o contributo do Barreiro para a época áurea da história de Portugal.

Algures na areia do que é hoje a praia de Alburrica, havia também uma menina a olhar as naus a subirem do rio Coina rumo ao Tejo e a imaginar que partia com elas. As outras chamavam-na à terra, puxando o fio dos seus sonhos até eles se desfazerem. A condição feminina não lhe permitia devaneios sobre a sua sorte, traçada desde cedo pelas leis de Deus e da tradição. No entanto, a imaginação dava-lhe asas para voar sobre o rio, qual gaivota, até ao Cais das Colunas, até ao alto de um mastro, até para lá do Bojador. E assim, a menina, os pés já grandes e calejados enterrados na areia, continuou sempre a fugir para ir olhar as naus. E nesses breves instantes era feliz.

II.

Chega o comboio.

A vila transforma-se. Primeiro uma estação, depois a outra, a mais bonita e imponente, local de abraços e despedidas. Na estrada outrora real, brilham agora carris que esventraram a vila. O azul do céu envolve-se num manto de cinza que só voltará a dissipar-se muitas décadas depois.

Vêm forasteiros de outras terras, que depressa se misturam com os camarros. Operários sazonais que vão ficando porque talvez numa vila, tão perto da capital, a vida seja menos dura. Outros vêm e vão como os comboios. E as crianças, que nunca andaram num, entram à socapa nas oficinas para se sentarem nas locomotivas e brincarem de maquinistas. Se o meu pai fosse maquinista, podia percorrer Portugal de lés a lés, de Valença a Faro sem pagar. Que feito extraordinário! Parece até que o mundo encolheu!

Vêm reis, escritores e poetas que rumam ao sul e que, mesmo no regresso, não se demoram. «Enquanto o vapor não chega detenho-me a abranger, amorosamente, dos terraços da estação do Barreiro, a marinha plácida que a meus olhos se desenrola.» (Fialho de Almeida, Os Gatos). Quantas histórias guardarão esses terraços? Promessas de regresso não cumpridas. Saudades que não se desvanecem como o fumo das locomotivas. Barreiro das passagens para novas aventuras.

III.

Constroem-se fábricas.

Em quinhentos anos de história, foi o século XX aquele que mais marcou a personalidade dos Barreirenses. Com tudo o que isso tem de bom e com tudo o que isso tem de mau.

A vila tinha a «Real Fábrica de Vidros Cristalinos de Coina» desde o século XVIII, uma mina de azougue, fornos de cal, as corticeiras e as oficinas ferroviárias. Porém, as histórias das nossas gentes, incluindo a minha, fundem-se mais profundamente com a história da CUF, símbolo máximo de uma tardia revolução industrial.

Alfredo da Silva trouxe empregos e bairros operários, oportunidades e centro de saúde, escolas e colónias de férias. Um modelo industrial perfeito onde todos os que não saíssem da linha podiam prosperar. «O que o país não tem, a CUF cria», assim era o lema e assim se criou. Em troca de magros salários e de engolir qualquer simples reivindicação, os barreirenses sentiam-se gratos por terem trabalho e abdicavam do seu património ambiental, que só hoje, mais de um século depois, começa a ser recuperado. Não se pode ter tudo. Não se pode também condenar. Alfredo da Silva é um produto do seu tempo e o que trouxe ao Barreiro em termos de desenvolvimento não tem paralelo com nenhum outro período da história. Quem se sujeitava em silêncio aos abusos cometidos estava apenas a tentar sobreviver. A alternativa era a fome. Também então eramos um país pobre. Nunca deixámos de o ser.

Ainda assim, a concentração operária permitiu desde cedo o germinar de ideais comunistas. Ainda antes da ditadura, o Barreiro era conhecido por terra vermelha e foi entre os operários e ferroviários que surgiram as primeiras tentativas de insurreição. Não era só a administração que punia os insurretos. Era o próprio regime. O povo calado, mas resistente, muitas vezes enfrentou os repressores, como quando nos anos trinta as mulheres fizeram um motim em protesto pelos espancamentos de detidos ou quando os barreirenses apedrejaram um vapor que levava presos políticos para Lisboa. «As investigações a que se referem os presentes autos foram quase sempre prejudicadas em virtude do povo do Barreiro, na sua maioria, mulheres, se opor às prisões efectuadas, vaiando e insultando os agentes captores e dificultando os transportes de presos quando eles se efectuavam para Lisboa.», lê-se num auto da PVDE nesse Abril de 1935.

Até ao dia da grande greve, corria o ano de 1943, em que a repressão foi de tal ordem que serviu de emenda aos mais ousados. Cento e vinte e sete operários foram integrados no Batalhão de Trabalhadores e foi instalado um regimento permanente de cavalaria da GNR dentro da CUF. Numa nota publicada na imprensa pelo Ministério da Guerra lê-se: «o pessoal que abandone o serviço, independentemente do sexo, e que, tendo sido preso, não seja de novo admitido ao trabalho, será imediatamente incorporado num batalhão de trabalhadores, subordinado à mais severa disciplina militar. Este trabalho, devidamente enquadrado, será utilizado, exclusivamente, em serviços pesados de interesse público». Portugal, país neutro a tender para o nazi. Depois disso, vivia-se no medo. Foram os tempos em que alguém gritava à janela “Olhá viúva” para avisar os perseguidos que vinha aí a carrinha preta da PIDE, que a meio da noite parava à porta de casa de um qualquer denunciado para o levar sem explicações.

Passaram quase quinze anos até os barreirenses voltarem aos protestos. Dessa feita usaram a cultura como arma, dando à luz várias associações juvenis, do Praiense ao Cine-Clube ou às comissões bibliotecárias que distribuíam livros proibidos. Eram os anos 60 e não foi só em Paris que os jovens iniciaram a mudança. Os desafios à autoridade passaram a ser mais recorrentes e os presos políticos também.

Quando se deu o 25 de Abril de 1974, os barreirenses contavam com setenta anos de resistência. Não é por isso de admirar que o Barreiro se tenha tornado a vila mais vermelha de todas quando chegou a liberdade, canalizando a sua raiva para o pilar que sustentava a sua economia: a indústria. Com as nacionalizações feitas à balda, carregadas de simbolismo e de incompetência, o Barreiro ficou mais pobre e várias décadas parado no tempo. Os barreirenses dividiram-se. Os comunistas reivindicaram a vila como se fosse sua. Queriam encontrar os “bufos” e os amigos do regime à força e indiscriminadamente, expulsando-os para bem longe. Os outros dividiam-se entre uma ínfima minoria que, de facto, prosperara com o Estado Novo e uma maioria que só queria voltar às suas vidas, finalmente em liberdade, mas longe da política e da contestação.

O Barreiro tornou-se uma terra dividida, onde só havia eles contra nós, e os barreirenses tornaram-se desconfiados, invejosos e um pouco cínicos até, características que ainda hoje não se dissiparam totalmente. Ao menor sinal de riqueza gritava-se “fascista!”, estigma que criou uma geração de pessoas com uma certa vergonha de enriquecer ou de mostrar que vivia bem. A pobreza era nobre, a riqueza não. Ah, vistas tão curtas!

O PCP apropriou-se de todos os símbolos de liberdade, empurrando quem não queria ser comunista para longe de qualquer manifestação. Para longe da política. Como consequência, todos os outros, que não se reviam no comunismo, demitiram-se dos seus deveres sociais. Eles que governem. Eles que recuperem. Eles que se preocupem. Os pais mandavam os filhos ficar longe de família tal, não te quero a andar com essa gente, olha que me dás um desgosto, sabes lá o que a mãe dele fazia, nesta casa não entra.  Montecchios e Capuletos à espera que as feridas sarem para voltarmos a ser apenas nós, barreirenses.

IV

Mas voltando às histórias das pessoas anónimas, para mim, activista de tantas causas, teria sido inspirador imaginar os meus avós a conspirarem na clandestinidade e a apedrejarem vapores. Porém, na minha família não houve esse tipo de resistência. Tão pouco houve amigos do regime. Avós e bisavós, todos vieram do nada e sempre se mantiveram à margem da política. A luta deles foi outra. Contra a pobreza e pela educação. O que conquistaram foi com o seu suor, sem ajudas e sem exploração. A luta proletária contra a burguesia, a abolição da propriedade ou estatização dos meios de produção, nunca lhes fez sentido. O vermelho nunca foi a sua cor. Ainda assim, foram amigos de todos, sem julgamentos ou ódios de estimação. Nós e eles. Todos juntos. Foi assim que aprendi a tolerância.

V

A história dos meus bisavós é parecida com a de muitos outros antepassados dos barreirenses.  E começa também na CUF, um oásis de oportunidades para quem apenas procurava uma vida melhor.

Há o bisavô Belarmino, que em 1936 fugiu da fome de uma aldeia perto de Viseu, com a mulher e três filhas com menos de cinco anos, para trabalhar num dos postos mais duros da CUF, os fornos. A sua mulher, a bisavó Adelaide, conseguiu trabalho nas tecelagens. Nos tempos livres, começaram a fazer à mão socas de madeira com restos de couro que iam para o lixo na fábrica, o início de um pequeno negócio que mais tarde veio a ser uma sapataria no Bairro das Palmeiras.

Há o avô Domingos, que começou a trabalhar na CUF aos 15 anos como estafeta. Aos 18 já era chefe de secção do centro de Medicina. Empreendedor, iniciou vários negócios em paralelo, desde máquinas de amendoins (torrados pela minha avó), à venda de ferros e fogões a gás ao domicílio, à criação da Ilha do Parque, até que em 1961 conseguiu deixar a CUF e abrir a sua primeira loja, a Prolar, também parte da memória de muitos barreirenses.

Há a bisavó Maria, a mãe dele, que não trabalhou na CUF mas que prosperou com a vida que o grupo trouxe ao Bairro das Palmeiras. Analfabeta, foi lavadeira desde menina em Estarreja, casou aos quinze anos para fugir da miséria e acabou em Alfama onde foi varina. Deixou o marido, fixou-se no Barreiro no final dos anos vinte e aí estabeleceu o seu próprio negócio, pôs o filho na escola, resgatou uma menina dos braços de uma mãe desesperada e criou-a também.  Foi exigente e intransigente para toda a gente menos para o neto, o meu pai. Se bem que lambia as laranjas que ele se preparava para comer, caso ele não quisesse partilhá-las com ela.

VI

A bisavó Maria era a figura principal das histórias que ouvi na minha infância. A Maria, a menina que ela criou, e que tenho como uma tia-avó, ainda hoje se encarrega de perpetuar a sua memória. Até os meus filhos já sabem o episódio das laranjas lambidas.

A Maria é a melhor contadora de histórias que conheço. Quando ficava a tomar conta de nós, contava-nos as peripécias da infância dos nossos pais e avós com perfeita encenação. Os gestos e a voz de cada personagem, as pausas carregadas de suspense, os finais cómicos e inusitados. Um dia quero sentar-me ao seu lado com um gravador e ficar a ouvi-la contar. Conta aquela quando o meu pai pôs uma música que começava com a loiça partida e tu achavas que se tinham ido os pratos. Ou aquela em que ele trancou uma menina num forno e se esqueceu lá dela a tarde inteira. Ai, filha, levou tanta porrada! Conta, Maria, conta! Quero guardar todas as histórias para que não se percam como tantas outras se perderam nestes últimos quinhentos anos. Quero guardar as expressões e o sotaque dela, autêntico camarro, como já não se ouve em muitos lados.

VII

Outra grande contadora de histórias foi a minha professora primária, a Professora Libertina. Não apenas durante os quatro anos em que me teve na sua sala de aula, mas sobretudo nos trinta anos seguintes, durante os quais nos correspondemos por carta. À data em que escrevo este texto sei que ainda recebe os postais que lhe envio religiosamente pelo seu aniversário e no Natal. Já não são endereçados à Avenida de Santa Maria mas sim ao lar onde agora vive. Eu é que já não recebo resposta, como recebi durante toda uma época em que só de ver a sua letra num envelope o meu coração acelerava, porque sabia que dentro dele encontraria conselhos sábios e um imenso carinho, daquele que ninguém sabe dar-nos quando crescemos. O Parkinson levou a voz que me guiava desde a infância. Da última vez que estivémos juntas, falou-me da sua.

Contou-me que era uma leitora compulsiva e que lia tudo, mesmo tudo, até coisas que não devia. Livros que a Renatinha tirava às escondidas da biblioteca do pai, que era oficial da Marinha. Livros com linguagem muito ousada para a época. Dizia à mãe que eram livros da escola e escondia-os atrás do reposteiro. E a mãe, como era analfabeta, tinha de se fiar na palavra dela, ignorando o teor dos textos.

Na casa da minha professora não havia livros, mas ela punha a mão em qualquer um que encontrasse. Também tinha um vizinho a quem pedia “O Século” emprestado. Era o Jorge, um gordo meio seboso e aparvalhado, assim mo descreveu, cuja mãe, que era feirante, comprava “O Século” porque queria que ele fosse instruído. Como o Jorge não estava minimamente interessado em se instruir, a minha professora pedia-lhe o jornal emprestado e devorava-o até à manhã seguinte. Depois deixava-o direitinho, debaixo da porta dele.

Fecho os olhos e imagino a minha professora pequenina, com os seus óculos de lentes grossas, escondida debaixo dos cobertores a lutar com as enormes folhas do jornal. Também para ela, a nossa pequena vila não saciava a sua voraz curiosidade.

VIII

Foi na Escola nº2 que a conheci.

Lá conheci também conceitos até então totalmente abstratos para uma menina de seis anos nascida numa família abastada. Desigualdade, fome e exclusão.

O primeiro foi quando a professora me pediu que não trouxesse os meus lápis e cadernos bonitos para a escola. Eu tinha comprado todo o material escolar nas minhas férias em Espanha. Borrachas em forma de frutas com aroma das mesmas, estojos com brilhantes, cadernos coloridos. Mas a professora explicou-me que vários meninos e meninas da nossa sala não podiam ter nada dessas coisas e, ver as minhas, deixá-los-ia tristes.  Fiquei um pouco envergonhada por não me ter apercebido de que nem todas as crianças tinham o que eu tinha. Canetas bonitas, brinquedos, um quarto só meu, férias em Espanha. Então, aprendi o que era a desigualdade.

Num outro dia, fiz queixa de uma menina que ficara com o meu pacote de leite da acção social escolar e a professora explicou-me, sem descurar o sentimento de injustiça que me invadia, que enquanto que para mim aquele pacote era um reforço ao meu lanche farto, para a outra menina era uma refeição. Como um pacote de leite podia ser uma refeição? Mas não tinha lanche? Não comia em casa? Então era por isso que a auxiliar que nos vigiava no recreio, a Dona Inácia, ia tantas vezes à pastelaria comprar lanche para alguns meninos, com o dinheiro que saía dos bolsos das professoras… Nesse dia, aprendi o que era a fome e passei a deixar ficar o meu pacote de leite para que outra criança pudesse levá-lo.

Ainda que não tivesse tido uma professora que me mostrasse, pelo exemplo e sem julgamentos, o quão dura podia ser a vida, a pobreza apresentava-se diariamente à porta da escola. Do outro lado da rua estreita, tão perto que quase podíamos alcançar a porta se esticássemos a mão, havia uma casa devoluta onde vivia uma família de etnia cigana. A etnia aqui só serve para explicar por que motivo as crianças empoleiradas nas guardas da nossa porta, nuas da cintura para baixo mesmo nos dias gelados, nos olhavam como se estivéssemos a entrar para um parque temático que lhes era vedado, espreitando lá para dentro com curiosidade. E eu não percebia por que aquelas crianças não podiam juntar-se a nós. Nem por que eram enxotadas com brusquidão. Nem por que os adultos se afastavam da casa quando nos vinham buscar. Foi das poucas coisas que a professora não me soube explicar, talvez porque é inexplicável que alguns pais não deixem os filhos aprender, quando a mãe dela, ou a mãe do Jorge ou a minha bisavó, mulheres analfabetas do início do século, tudo fizeram para que os seus tivessem essa incrível oportunidade. Nessa altura, aprendi o que é a exclusão.

IX

Tirando as mulheres mencionadas e os ciganos, toda a gente que eu então conhecia tinha, pelo menos, a quarta classe. Foi por isso uma enorme surpresa quando a Dona Infância começou a trabalhar lá em casa e eu descobri que ela não sabia ler. Um adulto que não sabe ler? Não pode ser. Então nunca foi à escola? Não, menina. Porquê? Porque tive de ir ajudar os meus pais no campo. E lá não havia escolas? Não. E porque é que não aprendeu depois? Porque comecei a trabalhar e não tinha tempo. Então como é que sabe qual o autocarro para casa? Pelo número. E quando a sua filha leva recados no caderno como é que sabe o que é que está lá escrito? Ela lê para mim. E a sua filha nunca lhe ensinou a ler? Não. Porquê? Porque ela tem mais que fazer e tem de estudar. E como é que assina o seu nome nos testes? Com uma cruz.

Decidi então ensinar a Dona Infância a ler. Todos os dias, enquanto a minha mãe não chegava e a D. Infância não tinha outro remédio senão ficar comigo, ia buscar o meu livro da primeira classe e ensinava-lhe as letras. Primeiro as vogais, depois as consoantes, como eu tinha ainda então apreendido. A Dona Infância não tinha paciência nenhuma para aquilo. Já estava de casaco vestido e só olhava para o relógio a fazer contas de cabeça ao tempo que ia demorar a chegar a casa se perdesse o próximo autocarro. Meia hora de caminho, mais fazer o jantar para filha, mais arrumar a casa dela depois de horas a arrumar a nossa. E eu irritava-me porque era tão fácil ler e ela não queria aprender. Então, mandava-lhe trabalhos de casa, que ela levava na mala mas nunca fazia. Acabei por desistir, não sem antes me certificar de que sabia ler e escrever o nome completo.

A Dona Infância era muito pequenina e sorridente, como se quem lhe pôs o nome tivesse vislumbrado o tipo de mulher na qual se iria tornar. No dia em que a conheci, não queria acreditar que tivesse mesmo aquele nome. Ninguém se chama Infância. Infância não é um nome. É sim, respondia ela, é o meu nome. Mas eu e o meu irmão preferíamos chamar-lhe Dona In.

A Dona Infância cirandava pela casa a uma velocidade estonteante. Admira-me que não tenha partido mais bibelôs, tal era a pressa com que passava de umas prateleiras para as outras com o pano cor-de-laranja. Pensando bem, partiu bastantes. A minha mãe ficava furiosa, não pelo acidente em si, mas porque a D. Infância nem sempre confessava o crime e deixava ficar lá o objecto arrumadinho, até ao dia em que alguém lhe tocava e reparava que estava partido. A mim dava-me jeito o desleixo, pois das poucas vezes que parti alguma coisa, fiz como ela, evitando um raspanete. 

A Dona Infância andava sempre a correr, escada acima, escada abaixo, com as socas brancas a espancarem o chão, e nunca tinha tempo para brincar comigo. Assim, andava eu atrás dela a fazer perguntas e a contar histórias. Foge daí sua magana, dizia-me ela quando eu me sentava na cama que ela acabara de fazer. E eu ria-me muito, porque nunca tinha ouvido a palavra magana. 

A Dona Infância nunca fazia queixinhas aos nossos pais, por mais disparates que fizéssemos, e eram muitos, sobretudo quando convidávamos os amigos ou os primos para brincarem lá em casa. Deixava-nos fazer cabaninhas com os lençóis acabados de passar, deixava-nos escorregar pela escada num colchão, a fingir que estávamos a descer rápidos, deixava-nos pôr a televisão aos berros e saltar em cima da cama e nunca nos pediu para tirar os sapatos para não sujarmos o chão. Quando eu e o meu irmão nos pegávamos, a Dona Infância era o meu esconderijo e dizia fique aqui ao pé de mim menina, deixe lá estar o seu irmão. E eu ficava e deixava que me fizesse festinhas com as mãos ásperas e a cheirar a lixívia, mas que me protegiam com ternura.

A Dona Infância uma vez levou-me a casa dela. Fomos no catorze até a um bairro com muito prédios e poucas árvores. O dela era verde seco. Não me lembro bem da casa, mas lembro-me da filha, a Luísa. Estava decidida a não gostar dela. Imaginava-a uma filha má, feia e carrancuda, que nunca tinha ensinado a própria mãe a ler. Deparei com uma jovem alta, ruiva e sorridente, que estava a estudar enfermagem e que saiu do quarto para cumprimentar a mãe e me conhecer. Piscou-me o olho antes regressar aos estudos. Passei a gostar dela.

A Dona Infância um dia foi-se embora e eu chorei muito. Fiquei mesmo zangada com a minha mãe por ter permitido tal coisa, longe de saber as razões de uma e de outra. Ao longo dos anos fui-me cruzando com ela na rua e dava-lhe sempre um grande beijinho. Trabalhava numa outra casa ali perto. Também tem meninos? Perguntei numa das primeiras vezes em que nos encontrámos. Não, menina, é a casa de uma senhora velhota. E eu fiquei aliviada porque não haveria outra menina a roubar o coração da minha Infância.

X

Nessa altura, ainda não deambulava sozinha pela cidade, se bem que tivesse autorização para fazer alguns percursos. Casa, escola, loja dos pais, café. Nessa altura a minha cidade era a rua Vasco da Gama, a Elias Garcia, a Miguel Bombarda, a avenida da República e a Alfredo da Silva.

Era precisamente numa dessas esquinas que estava sempre o ceguinho de mão estendida que dizia em contínuo “tenha a bondade”. Entre as crianças circulava o mito de que ele não era mesmo cego, apenas se fingia para ficar com o dinheiro das pessoas e, na verdade, até já estava podre de rico. Eu nunca acreditei nisso porque seria muito estúpido alguém passar o dia inteiro parado no mesmo sítio a dizer “tenha a bondade” se tivesse dinheiro para estar em casa sossegado. Por isso, sempre que podia, gostava de lhe deixar uma moeda na caixa metálica que ele tinha pendurada sobre a barriga.

XI

Nunca tive qualquer receio de andar sozinha, até porque, a cada passo, encontrava alguém conhecido. Amigos dos pais, amigos dos tios, amigos dos avós, vizinhos do lado, da frente, de baixo, os donos e os empregados das lojas que costumava frequentar. Uma das vantagens da minha cidade pequena, que se tornou desvantagem quando fiquei mais velha e parecia que os meus pais tinham espiões por todo o lado.

Quem eu encontrava quase todos os dias, porque morávamos na mesma rua, era a Dona Lurdes, uma amiga dos meus avós com quem tenho pena de não ter conversado mais. Quando a conheci, pelos meus 4 anos não gostei dela. Na altura ia lá a casa para me dar injecções. Era enfermeira, pelo que, se a via ao longe, escondia-me para não ter de cumprimentá-la. Imaginava que na sua mala levava uma seringa pronta para me espetar. Só muito mais tarde, quando se tornou presença assídua da nossa casa, comecei a ouvir as suas histórias e soube que tinha tido uma vida pouco convencional. Deixou o marido e foi para Paris, porque não era feliz e não arranjava emprego. Quando voltou, e começou a trabalhar no posto médico da CUF, continuava a não se rever no casamento e voltou a deixar o marido, de vez. Que escândalo. Além disso, nunca teve filhos, o que se hoje ainda é motivo de olhares julgadores, imaginem nos anos cinquenta.

A Dona Lurdes ouvia as discussões lá de casa e não dizia nada. Mais tarde passava por mim e lançava assim uma frase para o ar, que me dizia que estava do meu lado. Não percebem, são de outro tempo, tens de ter paciência.  E eu sentia que afinal havia adultos que compreendiam os ímpetos juvenis.

A Dona Lurdes andava sempre muito bem vestida e maquilhada, a sombra a fazer sobressair o azul dos olhos. Gostava de passear, de andar na rua, no verão ia à praia e fazia topless. Aos oitenta. Sempre fiz, não ia agora deixar de fazer. Parecia sempre turista na minha cidade pequena. E não se ralava nada com isso.

XII

Muitas vezes depois da escola, em vez de ir logo para casa, costumava ir lanchar ao café do Sr. Armindo, ali atrás do edifício da Câmara Municipal. O meu lanche preferido era uma sandes de fiambre com manteiga e um Ucal de chocolate. Também gostava dos queques mas só se tivessem as pontas queimadas. Era suposto a minha mãe encontrar-se lá comigo para lancharmos mas, por vezes, demorava muito e eu queria mesmo era ir para casa ver os desenhos animados. No café do Sr. Armindo não passavam os desenhos animados. Mas havia um papagaio.

O sr. Armindo era sempre muito simpático para mim e por vezes até vinha ver o meu caderno quando eu me sentava numa das mesas a fazer os trabalhos de casa. Eu de tímida não tinha nada e era uma grande tagarela, por isso ganhava dele grandes sorrisos. Mas acho que passou a achar-me ainda mais graça a partir do dia em que lhe pedi uma sandes de melancia. Foi num dia de birra. Eu estava com a minha mãe e devia estar a fazer uma tão grande que quando ela me perguntou que sandes queria eu respondi «não sei o que há», como se não comesse ali quase todos os dias. Sr. Armindo, diga lá à Filipa que sandes é que há. Há de tudo, respondeu ele. Ai, sim? Então quero uma sandes de melancia, respondi triunfante. Ah, como sabia bem apanhar os adultos…

Ao longo dos anos em que continuei a frequentar aquele pequeno café familiar, mesmo quando já era adulta, o Sr. Armindo volta e meia perguntava se eu queria uma sandes de melancia. Era giro encontrarmo-nos um dia e experimentarmos comer uma.

XIII

Melhor que as sandes de melancia eram, sem dúvida, as bombocas e os passarinhos do Tico-tico. Ou as tortas de chocolate. Ou os pastéis de nata que eu comia com uma colher de café sentada nas cadeiras pretas ao lado do meu avô, rodeada de caras familiares. que me conheciam desde pequenina, e ao meu pai desde pequenino, e à minha mãe também. Senhoras com cabelos muito armados e os lábios muito pintados e as bochechas a cheirar a pó de arroz, que queriam beijinhos e se riam muito de qualquer gracinha que eu fizesse.

Fundado em 1948, nos anos 60 e 70 o Tico-Tico foi ponto de encontro dos jovens, palco de tertúlias e artistas, sendo o seu mais célebre frequentador o Cabanas. Desses tempos descobri um depoimento do pintor Kira: «Conheci o Mestre Manuel Cabanas no Café Tico-Tico. Chamou-me a atenção o seu entusiasmo pela xilogravura que praticava todos os dias em pleno, no dito café. Nas primeiras impressões fiquei de imediato convencido que estava perante um grande artista e muito mais. Nas nossas conversas era um homem aberto, sabedor, coerente, bondoso e que gostava de me contar histórias da sua vida de cidadão, da sua actividade política, do seu humanismo perante a vida. A sua frontalidade e a sua coerência levaram-no várias vezes à prisão. Nunca ninguém o vergou. As suas ideias vinham ainda com mais força e, perante os jovens que o cercavam na sua mesa de trabalho (no café) dava conta da sua estadia, dos interrogatórios dos esbirros e, de dedo em riste abria-nos os olhos discursando, sem medo, indicando-nos que o fascismo um dia iria acabar, que havíamos de conhecer a liberdade que nos conduz à democracia.» A minha mãe confirma que assim era. E que ele gostava de pôr a não na perna das raparigas que se sentavam a seu lado, mas elas não se importavam porque ele era muito simpático e estava sempre a contar histórias emocionantes, como um velho professor, que aliás também era, na Escola Alfredo da Silva.

Hoje o Tico-tico continua no mesmo lugar, com menos mesas e menos gente e uma decoração insípida, igual à de tantas pastelarias, tão diferente da estética anos cinquenta de que me lembro. Perdeu-se o ambiente de tertúlia do piso de cima e os lugares marcados do piso de baixo. No entanto, no outro dia passei por lá e pedi uma torta de chocolate e ainda me soube ao mesmo.

XIV

Agora que mencionei o Kira, a minha memória voou para o seu estúdio de pintura, que durante uns anos foi no Moinho do Jim. Pelo menos foi lá que passei uma tarde com ele, quando tinha cerca de onze anos, para que me ensinasse a usar as tintas de óleo que o meu avô me havia oferecido no Natal. Foi a única aula de pintura que tive na vida, mas valeu por várias. Cheguei muito intimidada, afinal ele era um artista de verdade, com obras em museus internacionais e tudo. Com muita paciência, o Kira explicou-me como se prepara a tela, a importância dos diferentes pincéis, como se misturam as tintas, com umas gotas de óleo de linhaça, que o óleo não seca logo pelo que é possível misturar as cores directamente na tela e fazer correcções horas depois, que os pincéis se lavam com terbentina e nunca se devem deixar sujos porque a tinta seca e nunca mais sai, que qualquer superfície plana serve de godé, até uma mesa, a dele coberta com camadas de cores já endurecidas como um enorme mapa de relevo tridimensional. Uma vez que eu não me decidia sobre o que pintar, sugeriu-me seguir uma das suas temáticas preferidas: os moinhos de Alburrica. Foi a minha primeira paisagem. Ofereci-a aos meus avós. E nunca mais quis experimentar outro meio que não o óleo, talvez porque o cheiro me remeta para aquela tarde de inverno em que, por momentos, me senti uma artista também.

XV

O olfato é o primeiro dos sentidos e aquele que melhor embala as recordações. Os cheiros tornam-nas vívidas, quase reais. Por vezes, às primeiras notas que nos entram pelas narinas, surge-nos não só um objecto ou um lugar, mas um episódio inteiro, como se tivesse acabado de acontecer. Mais do que uma fotografia, que cristaliza um momento, a memória olfativa é uma viagem no tempo e as minhas levam-me de volta ao Barreiro.

Há muitos cheiros que preferia que se tivessem perdido para sempre, como o cheiro dos gases das fábricas, que cobriam a cidade de um espesso nevoeiro matinal, tão espesso que, por vezes, me impedia de ver o fundo da rua. Ou o cheiro do rio na maré baixa, o lodo pastoso e escuro, um pântano fétido que nos afastava da parte mais bonita da cidade. Porém, são muitos mais os que me invadem de bem-estar.

O cheiro primaveril de quando atravessava o jardim dos Franceses para ir para as aulas de Ballet, excepto no Inverno, que já era escuro de mais para eu e a Laura passarmos por lá. Melhor ir pelo passeio, mais iluminado, as duas a tagarelar todo o caminho.

O cheiro do palco dessa mesma associação, uma mistura de madeira antiga encerada e pó, que era o mesmo da sala onde as aulas decorriam, e que é, ainda hoje, o mesmo cheiro da valsa em B menor de Chopin. E a professora Helena, com as suas capas de lã e perneiras, a tentar não se rir das conversas parvas que tínhamos enquanto nos vestíamos no canto da sala.

O cheiro das farturas do Carlos nas festas do Barreiro, que eu comia até ter as bochechas cobertas de açúcar, tendo o cuidado de, antes de ir embora, ir buscar outra para a minha mãe, que não dispensava a fartura, quentinha se não perde a graça, mas que não gostava de ir às festas. Só que eu, o meu irmão e os meus primos íamos na mesma, que a avó Laurinda tinha sempre fichas para os carrinhos de choque para nos dar e, por vezes o Carlos também.

O cheiro da mercearia do Sr. António, a frango assado depois das sete, mas a uma mistura de cebolas, fruta, bacalhau seco e detergente durante o resto do dia, no tempo em que o detergente era em pó e se vendia em caixas de cartão. Ele muito calado e transpirado do calor da grelha, mas sempre afável e educado. Antes dele, a mercearia era do Sr. Abel, que nos levava sacas de batatas a casa e tinha cebolas e chouriços pendurados no tecto.

O cheiro a livros novos da Livraria do Bocage, misturado com o dos livros mais antigos das prateleiras do fundo, misto de modernidade e alfarrabista como todas as livrarias deviam ser.

O cheiro dos frigoríficos novos, que eu gostava de abrir quando deambulava pela Prolar, escondida entre as filas de eletrodomésticos, a pregar sustos às funcionárias infinitamente pacientes, a São, a Felicidade, a Amélia.

O cheiro a cola e graxa do sapateiro da Rua Vasco da Gama, que atravessava a rua até à minha porta.

O cheiro das torradas com manteiga em pão de forma da pastelaria Términus.

O cheiro da ginjinha do Manel da Galega que nós bebíamos décadas antes de se tornar uma tradição presidencial.

Hoje, nos meus passeios por Lisboa, há cheiros que quase me transportam até ao outro lado do rio, mas que nunca são a mesma coisa.

XVI

No outro dia, perguntei às minhas avós se tinham alguma história que eu pudesse partilhar neste livro. Disseram-me que não, que as suas vidas foram normais e sem aventura. Como se isso fizesse delas menos interessantes do que os protagonistas de episódios eternizados nos documentos oficiais. Disse-lhes que estavam enganadas. Que são precisamente as histórias normais que me interessam. Das pessoas comuns, que nunca têm voz e cujas vidas parecem tão simples e sem significado. Histórias sem heróis mas com os seus momentos heróicos, de luta, de sonhos, de ambição, mesmo quando esta se alimenta do simples e universal desejo de querer uma vida melhor. Cada uma das pessoas que viveram no Barreiro nos últimos quinhentos anos tem uma história dessas, uma história que só perderá o significado quando não houver a quem a passar.

Assim, e respondendo ao mote que dá título a este livro (500 anos, e agora?), o que hoje o Barreiro precisa é de não deixar os barreirenses partirem. Inventar maneiras de pô-los de novo a viver no centro, reabilitando o Barreiro velho, devoluto e ilegalmente ocupado, para que sintam a cidade como sua. Para que deambulem
pelos espaços ao ar livre, pela beira-rio, pelos dos jardins cada vez mais floridos. Para que conheçam os vizinhos e lhes batam à porta para pedir um raminho de salsa, de vez em quando. Para que criem recordações tão banais quanto estas. Porque, mais uma vez, recordo, enquanto houver pessoas haverá histórias. E enquanto houver histórias as cidades não morrem.

Ensaio para o livro «Barreiro 500 anos. E agora?», publicado pela Câmara Municipal do Barreiro em Junho 2021

12 opiniões sobre “A minha cidade pequena

  1. Amei cada palavra, cada descrição deste texto.
    Senti os cheiros, vivi todas estas experiências através da leitura deste excelente texto.
    Muito obrigada pela partilha de todas estas emoções sentidas por quem vive ou viveu nesta linda cidade.

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  2. Querida Filipa, não tenho palavras à altura dos sentimentos que este texto me despertou. Cada palavra, cada linha, cada conceito, cada evocação, trouxeram-me a emoção de me estar a sentir viva e integrante nesta memória sobre nossa cidade. Que lindo, que bem escrito. Chorei, chorei, chorei, como se renascesse em cada frase, identificada nos detalhes descritos e estendidos ao pormenor, os sonhos, as ilusões, até as lágrimas desiludidas, deixadas na muralha. Os gases. Meu Deus, os gases. Nasci no Bairro Operário da CUF, sou barreirense em cada célula, em cada linha deste Barreiro. Adorei Filipa, que lindo, que real, o meu Barreiro, a minha infância, a minha adolescência, a minha juventude, o meu envelhecer, bem, nestas recordações e nesta vivência que é igualmente tão minha. Quando partir, quero levar comigo este texto, sendo que levo muito da minha vida.
    FILIPA, OBRIGADA!

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  3. Adorei ler…vivências diferentes com muitos aspetos comuns dos que cresceram e continuam aqui…nesta cidade pequena mas grande p nós …Parabéns !

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  4. Soberba escrita que denota em cada linha, uma ternura por todas as vivências, sentimentos, rebeldias, incongruências desta nossa terra.
    Por ela assim mesmo ser, é que a sentimos em nós, mesmo quando longe.

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