Os Novos Loucos Anos 20

Desde Março que tenho vindo a tecer várias considerações sobre a pandemia e os efeitos que esta está a ter sobre nós, enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Já falei das saudades, da importância da escola, da sustentabilidade económica e das birras ao Covid. Hoje, em jeito de balanço de um ano que ninguém esquecerá, vou debruçar-me sobre as transformações sociais que o rescaldo de um evento destes pode trazer.

Quando a pandemia passar (ou pelo menos acalmar), as pessoas vão dividir-se em dois grupos: as que viverão no trauma e as que viverão no êxtase. No primeiro grupo, estarão as pessoas que, desde que isto começou, têm sido muito cautelosas e cumpridoras; as que se mantiveram isoladas mesmo depois do fim da quarentena; as que sofreram uma perda, seja de rendimento, seja pessoal; as que estiveram na linha da frente; e as que não acreditam na eficácia da vacina, nem que isto alguma vez vá desaparecer. São pessoas que estão escaldadas, desiludidas, magoadas, deprimidas. Viveram tempos tão negros durante a pandemia, que, quando isto acabar, vão desconfiar até do sol. Viram as suas esperanças tantas vezes aniquiladas, que vão recusar-se voltar a sonhar.  Viverão, por muito tempo, no trauma. No segundo grupo, estarão as pessoas que contam os dias para saírem em liberdade, como se de presidiários se tratassem; as que nunca deixaram de ir jantar fora e de estar com amigos, com os devidos cuidados; as que seguiram com os seus projectos, mesmo sabendo que não teriam grande retorno; e as irresponsáveis, que acham que o bicho não lhes pega e se pegar azar o dele. Algumas destas pessoas, antes de Março de 2020, se calhar até não saíam muito, nem eram dadas a grandes euforias, mas agora, tudo mudou. De dia para dia, sentem crescer uma pulsão dentro de si, uma necessidade de fazer tudo, sentir tudo, aproveitar tudo e nunca mais ficar em casa. Quando sentirem que o inimigo foi derrotado, vão sentir-se renascidas e vão querer celebrar a vida. Viverão no êxtase.

O segundo grupo, felizmente, é muito maior do que o primeiro e a sua atitude positiva é impulsionadora de grandes mudanças, catalisadora de tempos áureos que ficam na História. Aconteceu com a Belle Époque, com os Loucos anos 20 e com os Anos Dourados da década de 50, períodos de prosperidade e de profundas transformações culturais que tiveram início após longos períodos de privação, clausura e medo.

A Belle Époque começou no fim do século XIX, com o final da Guerra Franco-Prussiana (1871), e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914). Da penicilina ao telégrafo, do cinema ao automóvel, as invenções e descobertas fervilhavam, acabando por modelar os comportamentos e os sentidos. Foi a época da Grande Exposição Mundial de Paris (1900), das viagens transatlânticas, da Art Nouveau e dos grandes movimentos artísticos como o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo e o Futurismo. Época de fé cega no progresso, nas máquinas e nas grandes cidades, brilhantemente captado (num tom profundamente crítico) na Ode Triunfal por um dos heterónimos de Fernando Pessoa:

“Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,

Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!”

Ode Triunfal, Álvaro de Campos (1914)

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e da Primeira Pandemia (a Gripe Espanhola), vieram os Loucos anos 20.  Foram anos inebriantes, criativos, tumultuosos de uma sociedade ávida de descompressão e eufórica. Os anos de Chaplin, do Dadaísmo, do Surrealismo, da Art Déco, da emergência do Jazz e do feminismo, dos eventos para massas, das mulheres de cabelo curto, vestidos acima do joelho e a fumar, dos cabarés e da maldita cocaína.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, viveram-se os Anos Dourados da década de 50. É a década da comunicação, com a influência da rádio e a chegada da televisão, mas também uma década marcada por enormes avanços científicos, como as vacinas ou o primeiro transplante de órgãos, e tecnológicos com o surgimento dos electrodomésticos ou a corrida ao espaço. A nível cultural é a década do Rock and Roll, da Bossa Nova, da arquitectura e da alta-costura, do novo modelo feminino, curvilíneo e sedutor, da juventude rebelde sem causa.

Não gosto de exercícios de adivinhação, mas se tivesse de apostar, diria que o segundo semestre de 2021 marcará o início de uma nova época áurea, a era pós-covid. Uma era de festa e de criatividade, de ideias e de esperança, de enormes avanços tecnológicos e de profunda consciência ambiental. E mais: uma era que se inicia com a credibilização da ciência, em lugar da opinião. Em que finalmente os heróis são os cientistas e os profissionais de saúde, em vez de celebridades superficiais.

Ainda nos esperam uns primeiros meses muito duros e um longo período de recuperação económica. A privação, a clausura e o medo não vão dissipar-se com as doze badaladas que anunciam o novo ano. Mas uma coisa é certa, Janeiro de 2021 começa com a vacinação em curso e com a saída de Donald Trump da Casa Branca, o que desde logo se afigura como profundamente auspicioso. O resto, é inevitável.

Bom ano.

2 opiniões sobre “Os Novos Loucos Anos 20

  1. Olá Filipa!
    Que belo texto, mais uma vez!
    Ao ler esta bela reflexão do que foi o passado, do que é o presente, e do que será o futuro daqui em diante, digo que me encaixo ali no meio. Digo isto, porque apesar de ter medo, receio, de ter tomado as medidas e cumprido sempre com as regras, posso dizer em assumir em público, que apesar de estarmos em plena pandemia à escala mundial, tive a sorte de viajar entre Maio e Outubro de 2020. E nunca me aconteceu nada. Foi um viajar diferente, foi viajar para destinos desconhecidos, e com ovas regras, e correu tudo às mil maravilhas. E espero que no 2º semestre de 2021, mesmo ainda com máscara possamos voltar a viajar, até porque já tenho um voo marcado, e quero que se realize.
    Que venham os Loucos Anos 20!!!!!

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