Agora só há “nós”

Screenshot 2020-04-10 at 16.51.50Ontem fui ao supermercado e, como toda a gente, tive de esperar um bocadinho à porta antes de poder entrar. Havia três outras mulheres na fila. Cheguei, olhei para cada uma delas para me certificar de que estavam mesmo na fila, uma vez que ainda não me habituei a esta coisa dos três metros de distância, e senti que todas me olharam com uma certa hostilidade. Aquele olhar que diz “é bom que estejas a ver que estou na fila e que não me tentes passar à frente”. Eu que até ia com o sorriso por baixo da minha máscara, sorriso esse que me esqueci de que elas não estavam a ver, fiquei momentaneamente sentida. Sei que andamos todos um bocadinho nervosos com esta situação, mas também não é preciso exagerar, pensei. Que trombudas. Elas e as outras pessoas que, já dentro do supermercado, andavam pelos corredores, com um ar desconfiado, por vezes assustado, ou simplesmente indiferente.

Durante o resto do dia, volta e meia vinha-me à memória o episódio. Um episódio tão insignificante, em que não foi pronunciada uma única palavra, mas que a minha mente insistia em revisitar, procurando talvez uma justificação para a frieza tão pouco usual. Até que a encontrei: precisamos do olhar dos outros para sentirmos a nossa existência, para sentirmos que estamos neste mundo, que somos reais. E estar em isolamento social retira-nos perspectiva da realidade. Não temos o outro como espelho. Não somos vistos. As mulheres que me olharam na fila do supermercado não estavam a ser hostis. Estavam apenas a certificar-se de que eu as via. De que existem. De que isto é real. De que estamos a viver isto.

Talvez, como muitos, ainda não estejam inteiramente conscientes do que nos está a acontecer. Talvez, quando começam a pensar no assunto, sejam assaltadas por ansiedades e medos que preferem afastar com a incredulidade. E fazem bem. Trata-se do uso instintivo de um mecanismo de auto-defesa importantíssimo para manter a sanidade mental. Há tanta coisa que pode correr mal e tanta coisa que vai correr mal, que o melhor mesmo é viver um dia de cada vez, sem pensar muito naquilo que não podemos controlar. Atravessando os dias como se isto fosse um sonho do qual seremos despertados a qualquer momento. Porém, haverá um momento, em que será inevitável abrir os olhos. Em que seremos confrontados com a realidade. Uma nova realidade, indiferente aos nossos planos, desejos ou necessidades. E, nesse momento, gostava que conseguíssemos perceber que esta é uma oportunidade única enquanto humanidade para nos tornarmos melhores.

Porque é a primeira vez na história que todos os países em todos os continentes estão a viver a mesma realidade ao mesmo tempo. A primeira vez que todos sabemos como todos os outros se sentem, quais os seus medos e angústias, seja qual for o seu país, partido ou religião. A primeira vez que o individualismo, o egoísmo, as aparências, o ser melhor do que os outros, deixam de fazer sentido porque os outros não nos vêem e têm coisas mais importantes com que se preocupar. A primeira vez em que o que nos une é muito mais do que o que nos separa.

Esta pandemia é um problema de todos. Não é como a fome, que é um problema dos países pobres. Não é como a poluição, que é um problema dos que ainda não nasceram. Não é como a guerra, que é um problema de territórios longínquos. Tudo problemas dos outros, que vamos ouvindo nas notícias, distantes, impessoais. Problemas que acentuam a distância entre o “nós” e o “eles”. Nesta pandemia só há “nós”. E quando só há “nós”, há menos desconfiança, menos preconceito, menos competição. Quando só há “nós”, aprendemos a olhar os outros. A assegurar-lhes que existem. Que importam. Que estamos juntos.

Não saber aproveitar esta oportunidade de mudança de paradigma será mais devastador para a nossa espécie do de qualquer pandemia.

3 opiniões sobre “Agora só há “nós”

  1. Ora nem mais. Uma reflexão que já me ocorrera quando ainda era um adolescente, depois de assistir ao filme “Armageddon” onde um grupo de heróis improváveis são cruciais para salvar a humanidade de uma catástrofe à escala global: Será preciso que aconteça algo do género na realidade, uma calamidade que afete toda a humanidade, para que nos unamos e cooperemos? Quem diria que esse dia chegaria, embora com um inimigo de dimensões muito menores, ao contrário do filme. Contudo, no filme, a ameaça é iminente. Na realidade atual, a ameaça é gradual, e nós humanos temos uma obstinada tendência para procrastinar até ser tarde demais, apesar de os factos sugerirem o contrário. Não só no caso em questão, mas também nos mais diversos problemas que provavelmente continuaremos a ignorar e a agravar quando tudo isto terminar (espero estar enganado). Tal como a prezada Filipa refere, esta é uma excelente oportunidade para parar para pensar, para revermos a nossa situação como civilização, ética, ecológica, económica, social e individualmente. Conseguiremos fazê-lo espontaneamente doravante, ou serão necessários mais “martelos invisíveis”?

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