A normalização do ódio

Quando era pequena, ouvia muito a expressão “não se aponta que é feio”. Talvez porque, como qualquer criança, era muito curiosa e gostava de mostrar aos adultos que estavam comigo as coisas novas e diferentes que encontrava pelo caminho. Às vezes era um pato, outras uma joaninha, mas podia ser também um anão, uma senhora de cabelo cor-de-rosa, um homem que levava uma perna às costas (juro, que vi!). Apontava ostensivamente, gritava um “olha!” surpreendido, ouvindo de imediato a tal frase, seguida de uma explicação lógica de normalização da diferença. O nanismo é uma condição que impede o crescimento, resultando numa pessoa muito baixa, se comparada com um adulto. A senhora pinta o cabelo daquela cor porque se sente bonita assim. Aquela perna que o homem leva às costas é uma prótese, porque ele deve ter perdido a sua perna num acidente. E eu entendia que há coisas e pessoas diferentes, e que isso não quer dizer que sejam melhores nem piores. Entendia também que não devia apontar para as diferenças, antes reconhecê-las e seguir com a minha vida.

Cresci numa sociedade com muitos defeitos, em que decerto havia pessoas racistas, xenófobas, intolerantes, mas que guardavam as suas crenças para si (excepto com uns copitos a mais à porta da taberna), porque tinham a noção de que, mesmo não concordando com o estilo de vida de A ou não gostando da cor da pele de B, apontar era muito feio. Mas eis que, quarenta anos depois, voltámos à caça às bruxas e à normalização do ódio, fenómeno que cresceu graças a uma noção totalmente deturpada do que é liberdade de expressão e que, no mundo ocidental, teve a sua ascenção na primeira campanha eleitoral de Trump, oficialmente lançada há 9 anos, em Junho de 2015.

Até então, os políticos eram tidos como pessoas minimamente formais, que escolhiam bem as palavras que utilizavam e que, mesmo atacando violentamente os seus adversários, faziam-no quase sempre através da ironia e das metáforas. Com Trump, o jogo mudou. Utilizando a desculpa de não ter papas na língua, rebaixou o discurso ao nível do insulto e, com a ajuda da comunicação social por si financiada, começou a difundir as suas perigosas ideologias, com destaque para a supremacia do homem branco, assim como mentiras descaradas que eram rapidamente difundidas pelas redes sociais até ao ponto de não retorno, isto é, até qualquer desmentido surgir tarde demais, deixando sempre a dúvida no ar. É assim que funciona a propaganda.

Em menos de uma década, os crimes de ódio passaram de algo que nos envergonha para algo que é cada vez mais desculpabilizado. Um imigrante é espancado, mas a culpa é dele, que andava a mendigar e estava bêbado; um negro é assassinado pela polícia, mas a culpa é dele, que não parou quando mandaram; uma mulher é violada, mas a culpa é dela, que estava a dançar com o homem e aceitou uma bebida. Há muita gente que deixou de ter pudor de apontar e de verbalizar o que lhe passa pela cabeça. Os imigrantes podem vir mas… que vivam bem longe e não se misturem com os meus filhos na escola. Não sou racista mas… eles que não se ponham a falar dialetos e a usar aquelas roupas da savana. Não tenho nada contra os gays mas… que grande desgosto teria se o meu filho fosse. Não sou machista mas… as mulheres é que devem ficar em casa com os filhos porque têm um dom natural.

Estas formas de pensar sempre existiram, claro, mas havia um certo atenuante, pois a maioria das pessoas haviam sido educadas de uma forma conservadora e Portugal era um país fechado. Agora, em pleno século XXI, num mundo globalizado, em sociedades que passaram do analfabetismo estrutural para a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, como é possível aceitarmos este tipo de discurso com um encolher de ombros? Como é possível ficarmos calados e termos vergonha de chamar o outro à atenção quando é ele quem deveria sentir vergonha pelo que diz? Como é possível que, apesar de haver um código deontológico, haja jornalistas e meios de comunicação social que são palco da normalização do ódio?

Este artigo poderia ter sido escrito há muito tempo. É algo que me inquieta e preocupa e que esteve também na génese do meu novo livro. Mas foi espoletado pelo episódio do jornalista da SIC que, em directo,  pontapeou um miúdo nas costas e depois disse que os distúrbios foram provocados por “jovens de origem árabe que andam no meio das multidões para arranjar confusão (…) Levaram um presente português”. Ou seja, um pontapé nas costas! Eram miúdos, árabes ou não, provavelmente parvos, que perante um directo televisivo, passam pelo jornalista e gritam Ronaldo e mais não sei o quê. Como fazem sempre em directos de qualquer estádio, em Portugal ou no estrangeiro. Neste tipo de eventos, há sempre jornalistas que são engolidos pela multidão, que lhes rouba o microfone ou enrola cachecóis nos seus pescoços. Sempre aconteceu, com miúdos de todas as raças, cores e etnias. E deve ser difícil trabalhar assim e ter de aturar gente parva porque a FIFA decidiu que os jornalistas têm de estar do lado de fora das grades, longe das estrelas do futebol.

Mas o que é estranho é um jornalista com vinte e tal anos anos de carteira profissional, mesmo que irritado com a multidão, mesmo que massacrado pelos empurrões inevitáveis e o desrespeito de alguns, não só se defenda a pontapé como venha em directo evidenciar que os jovens eram árabes (provavelmente já nascidos na Alemanha, sabe lá ele), como se a sua nacionalidade tivesse alguma coisa que ver com a história. E ainda se pega à pancada, descarregando a sua raiva e preconceito. A SIC, normalizando o discurso de ódio, defende o jornalista dizendo que foi agredido e deslocou o ombro. Todos os meios de comunicação do grupo Impresa reforçam a agressão, como se isso desculpasse o pontapé nas costas e o comentário xenófobo do jornalista. Claro. Há sempre um ângulo para cada história. O ângulo que mais convém. E de repente, andar ao pontapé com o primeiro que nos chateia é tão normal que até um jornalista o faz em directo. Ou a praça pública se transformou numa taberna ou então andamos todos bêbados.

São estes pequenos episódios que propagam o ódio como fogo em mato seco. O ódio que separa «nós» e «eles». Eles: todos os que não são da nossa cor, do nosso credo, do nosso partido. Eles: essa entidade distante, intolerável, a abater.

Tristes dias estes. 

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