Mulheres: da rivalidade à sororidade

Nós, mulheres, somos tendencialmente más umas para as outras. Através da arte de maldizer, gostamos de minimizar feitos e acentuar rivalidades que, na maior parte das vezes, apenas existem na nossa cabeça. Que está mais gorda, que está muito magra, que está cheia de rugas, que está mal vestida, que não se cuida, que deixa os filhos fazerem tudo, que nunca sai de casa, que sai demasiado de casa, que está casada com um mono, que não assenta com ninguém, que é uma púdica, que é uma puta, que o sucesso lhe subiu à cabeça, que deve ter dormido com alguém, que é rica mas está sozinha, que é casada mas infeliz, que é bonita mas burra, antipática ou desinteressante e por aí fora. Frases como estas ecoam nas conversas de café, em jantares de amigos e nos mais diversos eventos sociais, dirigindo-se a conhecidas e desconhecidas, a colegas de trabalho e até mesmo a familiares. Esquecemo-nos é que, quando dizemos qualquer uma destas frases, estamos apenas e só a perpetuar uma construção da sociedade patriarcal.

A rivalidade entre mulheres é um conceito que tem por base a busca por validação masculina. Durante séculos fomos educadas para agradar aos homens de modo a conseguir agarrar o melhor pretendente, que garantisse o nosso sustento e o dos nossos filhos. Tínhamos de ser a mais bonita, a mais desejada, a mais prendada, a melhor mãe, a melhor filha, a melhor esposa. Fomos também educadas para desconfiar das outras mulheres, assumindo que só se aproximam de nós para nos roubar o marido, o emprego ou a mera receita daquele bolo que toda a gente elogia. É uma narrativa que começa a desenrolar-se logo na infância, quando nos contam histórias de embalar com uma Rainha Má, que quer matar a Branca de Neve apenas porque ela é a mais bela, ou uma Úrsula, que engana a pequena Ariel para lhe roubar a magnífica voz. Mulheres boas e mulheres más, divididas, separadas, irreconciliáveis. Até que aparece um príncipe para salvar a boazinha da sua rival, apaixonam-se à primeira vista (porque o que interessa é o exterior) e vivem felizes para sempre. Moral destas histórias para enganar meninas: desconfiem sempre das mulheres e contem com os homens para resolver os vossos problemas. É por isso que, ainda hoje, quando tantas de nós já nos assumimos como feministas e lutamos juntas pelos nossos direitos, continua a ser difícil elogiar espontaneamente outra mulher e, principalmente, defendê-la sem hesitar sempre que ouvimos uma frase como as acima mencionadas.  

O antídoto para este mal profundamente enraizado na sociedade é apenas um: sororidade, «a relação de união, afeição ou amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs», pelas palavras do dicionário. Ou por outras: «a resposta moral às tentativas do patriarcado de estabelecer desunião entre as mulheres»[1].

Sororidade vem do latim soror, que significa “irmã” e pode ser considerado o feminino de fraternidade, que se originou a partir de frater, que significa “irmão”. A primeira vez que o termo surgiu foi pela pena do escritor e filósofo espanhol Miguel de Unamuno no seu romance «A Tia Tula», publicado em 1921, onde, fazendo alusão a Antígona, escreveu: «así como tenemos la palabra paternal y paternidad, que derivan de pater, padre, y maternal y maternidad, de mater, madre, y no es lo mismo, ni mucho menos, lo paternal y lo maternal, ni la paternidad y la maternidad, es extraño que junto a fraternal y fraternidad, de frater, hermano, no tengamos sororal y sororidad, de soror, hermana”. Durante a chamada «Segunda Vaga do Feminismo» (1960-80) o termo assumiu uma carga política e militante, propondo uma ligação de irmandade entre mulheres que se sobrepusesse a qualquer diferença de classe, raça, religião, nacionalidade ou orientação sexual. Hoje, em plena quarta vaga feminista, a palavra ganhou uma maior carga emocional, sendo usada como um apelo às mulheres para que parem de competir, de se comparar umas como as outras, de se olharem como rivais, e comecem a ver-se como irmãs.

A sororidade está, aliás, por trás da Teoria do Brilho (tradução livre), no original The Shine Theory, sugerida pela jornalista do New York Times Ann Freidman num artigo que escreveu em 2013. Nesta peça, Freidman explica que a maior parte das vezes somos duras com as outras mulheres porque nos sentimos inseguras e encaramos o sucesso das outras (seja na esfera privada, seja na esfera profissional) como uma afronta pessoal. «Quando odiamos outras mulheres que nos parecem mais bem-sucedidas do que nós, estamos apenas a expressar os sentimentos negativos que temos em relação às nossas próprias carreiras, corpos ou relações. Mas há uma solução: quando conheceres uma mulher que te intimida pela sua inteligência, estilo, beleza ou realização profissional, torna-te amiga dela. Rodeares-te das melhores pessoas não te torna pior em comparação. Torna-te melhor». Esta é a base da Teoria do Brilho: se uma brilha, brilhamos todas. Diversos estudos científicos demostram que, sobretudo na área profissional, as mulheres que mantêm uma rede de contactos com outras mulheres e que se ajudam mutuamente, conseguem posições mais importantes e, consequentemente, mais bem pagas. Neste sentido, sugiro a leitura de um outro artigo muito interessante que encontrei na Forbes, «The Power of the pack: woman who support women are more successful», que começa logo com uma frase que devíamos todas tatuar na testa: uma mulher sozinha tem poder. Juntas temos impacto.

Voltando à Teoria do Brilho, embora a autora incentive a que tem menos a aproximar-se da que tem mais (sucesso, reconhecimento, confiança), eu acho que o inverso também deve acontecer. Se tivermos a sorte de sermos nós a estrela mais brilhante do grupo, então cabe-nos iluminar as nossas irmãs que se escondem na sombra. E isto faz-se tanto com gestos simples como avisar que tem um bocado de alface nos dentes, partilhar o massagista que nos livrou da celulite ou o nome da loja onde comprámos aquele vestido tão cobiçado, como com gestos mais impactantes como partilhar a nossa rede de contactos profissionais, dizer quanto ganhamos ou dar dicas de negociação para uma promoção. Passa também por nos elogiarmos umas às outras. O elogio sincero vindo de outra mulher é um enorme acelerador da auto-confiança. Porque quando um homem nos elogia, achamos que está apenas a ser cavalheiro ou a lançar charme, mas se for uma mulher, que não nos quer nada nem precisa de nós, ficamos desarmadas e acreditamos que está a ser sincera. Se calhar estamos mesmo bonitas. Se calhar fizémos mesmo um bom trabalho. Se calhar devemos estar mesmo orgulhosas de nós próprias. E, então, a nossa luz começa a tremeluzir, depois a tornar-se mais forte e brilhante, até nos sentirmos invencíveis. De repente, deixa de haver uma só estrela e passa a existir uma constelação de mulheres confiantes, determinadas, imparáveis e que, acima de tudo, estão lá umas para as outras.

Recentemente tive a sorte de encontrar uma estrela brilhante do panorama literário português. Uma mulher incrível, que criou uma plataforma que reflecte tudo o aquilo que acabei de escrever: o BookGang. Trata-se de uma livraria virtual/curadoria literária que apenas tem livros escritos por mulheres. Ali, a Helena Magalhães, que também é escritora, promove os livros de outras mulheres, com ainda maior ênfase quando são portuguesas, a milhares de leitores que subscrevem mensalmente as suas caixas de livros. Além de estar a pôr cada vez mais pessoas a ler, a Helena é um exemplo de uma mulher que, ao brilhar, ilumina todas as outras, tendo hoje uma comunidade de mulheres que acarinham e promovem o trabalho de outras mulheres. Uma verdadeira sororidade.

Nesta quarta vaga feminista, continuamos a lutar para termos mais voz, para mudar hábitos patriarcais, para acabar com as desigualdades salariais e com os estereótipos sociais. Mas para que tal aconteça tem de se começar por uma mudança de paradigma entre nós próprias: da rivalidade para a sororidade. Temos de ser nós, mulheres, as primeiras a elogiar, a promover, a incentivar e a defender as outras mulheres, até porque, se o lema do inimigo é dividir para reinar, a única estratégia para o vencermos é mantermo-nos unidas.  


[1] Tatiana Leal “A invenção da sororidade: sentimentos morais, feminismo e mídia”, de 2019.

ilustração ©Libby VanderPloeg

Uma resposta a “Mulheres: da rivalidade à sororidade”

  1. Mais um excelente exercício de escrita, mas também de maturidade e realidade , longe da habitual ficção que é o lugar habitual da maioria dos escritores ao metro .
    Parabéns Da Filipa, e , acima de tudo , que o reconhecimento do grande público se traduza em vendas.
    Abraço com amizade,
    Rui Belo

    Saudação especial ao meu caro amigo Tiago

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