Escrever

Muitas vezes me perguntam quando é que descobri que queria escrever e a resposta costuma ser: quando era muito, muito pequenina.

Sempre adorei livros e, bem antes de saber juntar as letras, folheava-os e inventava histórias conforme as ilustrações que via em cada página. Também era habitual fingir escrever contos, que não eram mais do que folhas repletas de gatafunhos, mais tarde «lidos» em voz alta para amigos (geralmente mais novos) que acreditavam que eu sabia mesmo ler e escrever. Saber não sabia, mas as histórias já existiam na minha cabeça. Só me faltava aprender a colocá-las no papel. Talvez por isso me recorde com precisão do dia em que fiz o meu primeiro «A». Estava a desenhar triângulos, até me aperceber de que, se colocasse a base um pouco mais acima, surgia a primeira letra do alfabeto. Fiquei muito orgulhosa de mim própria, sobretudo porque ninguém me tinha ajudado, e preenchi uma folha inteira com aquela letra-triângulo.

Podem imaginar, então, o meu entusiasmo ao entrar no primeiro ano de escolaridade e a avidez com que aprendi o resto do alfabeto, desejosa de poder finalmente despejar por escrito todos os mundos que tinha dentro de mim. Comecei a escrever e não parei até hoje, incluindo um diário que me acompanha desde o dia 1 de Junho de 1987 (em vários volumes, claro). À medida que fui crescendo, mais do que um prazer, mais do que uma ocupação, escrever tornou-se uma necessidade. Algo de que preciso para sobreviver. É a forma de dar sentido ao mundo e de o mundo me fazer sentido.

Se não escrevo, é como se as coisas não existissem. Tenho de cravá-las no papel, de preferência a caneta, para que se tornem reais, concretas, inteligíveis. Há pessoas que apreendem o mundo pelas formas, outras pelos cheiros, outras pelas cores e há até quem o faça pela música. Eu preciso do alfabeto.

Se não escrevo fico de mau humor. Fico impaciente, sobretudo ao fim-de-semana, todo o dia rodeada da família ou de amigos e de inúmeras distracções. Aproveito os momentos, claro, mas confesso que anseio pela chegada da segunda-feira, quando a casa volta a estar em silêncio e eu posso sentar-me a escrever. Aprendi a contornar a situação (inevitável para quem tem dois filhos pequenos) carregando sempre comigo um caderno e uma caneta, para que nenhuma frase ou ideia inesperada me escape.  Desafios de uma mãe-escritora. Virgínia Wolf escreveu um ensaio sobre as desigualdades entre escritores e escritoras, defendendo a necessidade de uma mulher ter um quarto só seu para poder escrever, longe das tarefas domésticas e distracções sociais. Virginia Wolf não chegou a ser mãe, se não, depressa perceberia que não basta um quarto. Até porque as crianças estão constantemente a bater à porta.

Se não escrevo, sinto-me presa, limitada, claustrofóbica. Porque escrever é terapêutico, mas sobretudo libertador, na medida em que nos permite pensar melhor. Sobre o mundo e sobre nós próprios. Permite-nos ainda criar infinitas possibilidades. Dimensões onde não existem expectativas, nem leis, nem espaço, nem tempo. Na verdade, escrever é a mais pura forma de liberdade.

Sim, descobri que queria escrever quando era muito, muito pequenina e as histórias apareciam na minha cabeça. Podia ter tentado contá-las em voz alta; porém, só a escrever encontro as palavras certas. Só a escrever sou absolutamente livre.

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