A memória olfativa é mais duradoura do que qualquer outra. Tem o poder de nos transportar para momentos que irrompem de tal forma vívidos, que até parece que entrámos numa máquina do tempo. Não é por isso de estranhar que, volta e meia, lugares que visitámos há várias décadas, surjam inteirinhos à nossa frente com uma simples inspiração. Aconteceu-me recentemente, enquanto passeava à noite pelas ruas quase desertas de Évora.
Ao passar por uma porta fechada, que nem reparei ser de um estabelecimento, senti sair pela ventoinha do respirador o bafo quente e doce de uma pequena mercearia, como as que costumava frequentar na minha infância. Era um cheiro a fruta, pêssegos, uvas, alperces talvez, com um toque floral de detergente da roupa. Um cheiro que não se encontra muitas vezes nas grandes cidades, onde estes estabelecimentos estão a desaparecer tão depressa como a floresta Amazónica às mãos do Bolsonaro. Claro que continuam a existir mercearias de bairro nas cidades. Não têm, porém, aquele aroma, quase apenas encontrado em pequenas vilas ou aldeias.
A verdadeira mercearia portuguesa tem pouca luz e jamais ar-condicionado. Tem pasta de dentes quase ao lado da graxa para os sapatos. Tem pão fresco mas só até ao meio-dia. Tem produtos de produtores locais que não encontramos em mais nenhum lado. Tem um pedaço de fruta espezinhado no chão. Tem caixotes a fazer de prateleiras. Tem a Dona Miquelina ou o Senhor Abel, que vendem fiado e apontam o nosso nome num caderninho de bolso. Tem tudo e, se não tiver, venha cá para a semana que eu arranjo.
Gosto de entrar num lugar assim. Faz-me sentir em casa, ao contrário das novas mercearias geridas por indianos ou paquistaneses, que muitas vezes nem falam português; ou das mercearias de decoração contemporânea, que investem em produtos tradicionais misturados com artigos gourmet estrangeiros, tudo inflacionado para condizer com o bolso dos estrangeiros que se mudam para cá aos magotes, porque é tudo tão barato e pitoresco para os seus ordenados de quatro dígitos e IRS de 10%; ou ainda das mercearias que não passam de supermercados de grandes grupos em miniatura, com luzes intensas e cartazes publicitários, prateleiras organizadas e um tapete rolante para as compras.
Naquela noite, em Évora não o pude fazer, dado a adiantado da hora, mas, assim que o aroma de uma verdadeira mercearia portuguesa me invade o olfato, costumo entrar, observar e comprar qualquer coisa, nem que seja um simples pão. Só pelo gozo de percorrer o espaço e sentir-me abraçada por uma mistura de saudade e felicidade de ainda existirem tais lugares.

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