Falar de sobredotação é ainda um assunto delicado e que pode ferir susceptibilidades. Num mundo hipercompetitivo, em que os pais vêem os filhos como extensões deles próprios, se dizemos que o nosso filho é excepcional em qualquer coisa temos quase sempre uma de duas reacções. A primeira é a dos incrédulos (e alguns invejosos) que tentam menosprezar o feito relatado com frases como “o meu também fazia isso nessa idade” ou “ah isso é só porque é despachado” ou ainda “oh, isso é porque o estimulas muito”. A segunda é a dos que nos felicitam como se fossemos os progenitores do Einstein e querem saber em que escola anda e que actividades pratica. No dia em que contei a uma amiga que o meu filho sabia ler e escrever com três anos, ficou muito entusiasmada, mas a primeira pergunta que me fez foi: “Como é que lhe ensinaste?”.
Os próprios pais de crianças sobredotadas têm uma de duas reacções: a negação, que é aquela atitude de desvalorizar e não aceitar que o filho é diferente; ou uma certa vergonha, no sentido ter receio de os outros acharem que estamos a falar do assunto para nos armar ao pingarelho.
Todas estas reacções são perfeitamente normais e expectáveis, espelhando na perfeição o pouco que se fala e se sabe sobre crianças com capacidades excepcionais. Como mãe de duas, decidi finalmente falar sobre o assunto na esperança de elucidar a população em geral e os pais de crianças com estas características em particular.
Estima-se que 3 a 5% das crianças e adolescentes, que frequentam as escolas, são sobredotados e a maioria estará por identificar. Porquê? Porque a sobredotação não se afigura como uma patologia nem como uma dificuldade de aprendizagem e, talvez por isso, alguns clínicos ainda a desvalorizem e até desincentivem os pais a procurar ajuda especializada. O mesmo acontece nas escolas, que não estão minimamente preparadas para lidar com estas crianças, mesmo quando a actual legislação em vigor (Despacho Normativo 50/2005, de 9 de Novembro, Art.º 5º) já prevê um conjunto de estratégias de intervenção, com vista ao sucesso educativo dos alunos com capacidades excepcionais, nomeadamente a adaptação do plano curricular e da pedagogia ou actividades de enriquecimento. Porém, num país em que em Novembro ainda há alunos sem professores em tantas escolas do país, imaginem o que acontece se um pai vai pedir apoio porque a sua cria está mais à frente do que os outros. Não admira pois, que muitos destes alunos se tornem maus alunos, não gostem da escola e muitas vezes nem cheguem ao ensino superior.
Mas o que é, afinal, uma criança com capacidades excepcionais?
Se bem que não haja consenso na definição de sobredotação, podemos afirmar que a criança sobredotada possui um potencial humano de nível superior e frequência constante em uma ou mais áreas operacionais das Inteligências Múltiplas (linguística, lógico-matemática, musical, físico-cinestésica, espacial, interpessoal, intrapessoal e naturalista), sendo cada uma destas inteligências independente das outras, embora se possam combinar – Teoria das inteligências múltiplas (Gardner, 1995). Renzulli acrescenta que a sobredotação é um comportamento que pode ser desenvolvido em pessoas que apresentam alguma habilidade superior à média, em certas ocasiões e sob certas circunstâncias, e não em todas e quaisquer circunstâncias. Ou seja, uma criança pode ser excepcional na Matemática e um aluno perfeitamente banal em História por exemplo, o que confunde ainda mais quer pais, quer professores, que ainda têm na ideia de que um sobredotado é aquele que é excelente aluno a tudo.
Tendo esta informação como pressuposto, eis as principais características que permitem identificar uma criança ou adolescente com capacidades excepcionais:
- Aquisição rápida da informação, o que leva a impaciência face ao ritmo dos outros e a uma recusa de rotinas básicas ou de repetição
- Faz perguntas desconcertantes e tem interesse excessivo em alguns temas;
- Questiona procedimentos de ensino e é demasiado autónomo no que domina, recusando-se muitas vezes a pedir ajuda;
- Grande capacidade para percepcionar relações de causa-efeito, mas dificuldade em aceitar o ilógico e áreas pouco claras (tradições, fé, sentimentos);
- Desfasamento elevado entre maturidade cognitiva e maturidade emocional (o que lhe causa sofrimento e enormes meltdowns);
- Pode ser visto como líder, mas também como alguém rude ou dominador.
- Amplo vocabulário e habilidade verbal, que pode usar para escapar ou evitar situações que não lhe agradem;
- Pensa de forma crítica e tem expectativas elevadas para si e para os outros;
- Excesso de perfeccionismo, que pode levar ao abandono de tarefas e actividades que acha que não vai desempenhar bem.
- Preocupações humanitárias e éticas muito fortes e um enorme sentido de justiça
- Concentração intensa e consequente desagrado com interrupções;
- Inibição face à crítica ou rejeição dos pares (grande necessidade de reconhecimento);
- Elevada energia, alerta, ânsia e frustração com inatividade;
- Independente, individualista, e inconformista;
- Forte sentido de humor, consegue percepcionar o absurdo em situações; no entanto, o humor pode não ser entendido pelos colegas o que o leva muitas vezes a tornar-se alvo de riso;
- Sensibilidade exacerbada;
- Desinteresse pela escola quando esta se torna pouco desafiante, o que leva muitas vezes ao abandono escolar.
Bonito cocktail, não acham? O meu filho foi avaliado pouco antes de fazer 4 anos e ainda hoje, que tem sete, apesar de toda a informação que tenho, há dias em que não sei lidar com ele. Se para qualquer pai ou mãe de uma criança não excepcional, já é tão difícil educar, e há um constante questionar se estamos a agir de forma correcta, para nós o desafio é redobrado. Há alturas em que não sei se devo ser mais cuidadosa na forma como o repreendo ou se devo dar-lhe a palmada que lhe daria caso não soubesse que era diferente. Quando ele está demasiado calado, não sei se está triste ou simplesmente absorvido pelos seus pensamentos. Quando ele faz uma birra, não sei se é uma reacção normal que qualquer criança teria na mesma situação ou se se deve à sua hipersensibilidade. No entanto, há algumas dicas que me foram dadas, nomeadamente pela Dr.ª Helena Serra da APCC e pela Dr.ª Ana Meira da ANEIS, que tento aplicar no dia a dia com os meus filhos:
- não exibir as suas características como se fosse um macaquinho a fazer gracinhas
- não os repreender em público (esta só tento, confesso, mas raramente consigo, sobretudo quando a atitude roça a insolência e má educação)
- não os encher com actividades extracurriculares e dar-lhe tempo para brincar
- ajuda-los a aceitar as suas limitações e mostrar que estou sempre disponível para os ajudar (se bem que estes miúdos acham que conseguem resolver tudo sozinhos)
- proporcionar um bom desenvolvimento das suas capacidades, maximizando as áreas fortes e estimulando as mais fracas
- não tratá-los como adultos só porque possui capacidades extraordinárias
- ser muito firme na imposição de regras e no cumprimento das mesmas
Claro que, cada caso é um caso e o que resulta com um pode não resultar com outro. Além disso, eu escrevo este artigo como mãe, e não como especialista na matéria. Por isso, se o seu filho ou familiar ter características de sobredotação, importa muito que seja avaliado por profissionais da área para depois adequar as medidas educativas e pedagógicas. Se o seu filho não for sobredotado, fica na mesma com a informação relevante que lhe permitirá identificar outras crianças (sobrinhos, filhos de amigos) e saber lidar com elas e com os respectivos pais, que acreditem, não vão ter a vida fácil e precisam de apoio, não de revirar de olhos.
Outras leituras e sites aconselhados:
https://bloga8.com/2017/09/14/psicologia-criancas-sobredotadas-orientacoes-para-pais-e-professores/
https://www.notsoformulaic.com/
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