O apagão de ontem foi para mim um exercício sociológico muito interessante, sobretudo para o debate cada vez mais aceso sobre o uso de telemóveis pelas crianças, mas também pelos adultos. Fui buscar os meus filhos à escola e as perguntas eram muitas. Nos primeiros momentos, não tinham percebido que não haver electricidade no país significava não haver televisão, internet e consolas. O que é que fazemos, então? Como falo com os meus amigos? Eis a questão.
As crianças e adolescentes de hoje, nativos digitais, não sabem o que fazer sem aparelhos eletrónicos. Mesmo os que ainda vão ao parque, ou jogam à bola com os amigos, fazem-no durante pouco tempo, e sempre com a certeza de que, ao regressar ao lar, terão a sua dose habitual de dopamina. Mas os adultos, de todas as idades, incluindo os que ainda são do tempo em que as distracções de hoje não tinham sido inventadas, ficam igualmente desorientados, aparvalhados, a tentar lembrar-se de como fazer coisas básicas sem a ajuda de um smartphone. Vi pessoas na rua a procurar desesperadamente sinal, incrédulas por estarem desconectadas. Eu própria peguei no meu algumas vezes, num gesto de puro hábito: será que recebi um email, será que tenho mensagens de WhatsApp, o que estarão as pessoas a partilhar sobre isto no Instagram?
Umas horas sem internet bastaram para percebermos o quão viciados estamos num aparelho que, até há pouco mais de dez anos era desnecessário. Nessa altura, já havia telemóveis, sim, mas para realmente telefonar ou enviar mensagens. Agora temos um aparelho que nos consome toda a atenção. E sim, é incrível podermos chamar um Uber, consultar os horários dos transportes em tempo real, fazer pagamentos e tanto mais. Mas facilmente nos habituámos a estar sempre ligados, atentos, alerta a notificações, perdidos num vórtice de informação e entretenimento portátil e disponível 24 horas por dia. Não pode ser coincidência o aumento de ansiedade, déficit de atenção ou distúrbios do sono.
Na tarde do apagão, os meus filhos, apercebendo-se de que não havia muito que fazer em casa para além de jogos de tabuleiro, foram brincar para a rua. Da janela do meu quarto ouvi as suas vozes e gargalhadas. Da mesma janela vi uma família inteira, pais e dois filhos, a passear um cão, e outra com crianças pequenas de bicicleta e trotinete. Vi três pessoas a fazer jogging, vários velhotes nos bancos de jardim que costumam estar vazios àquela hora, vizinhos a conversarem à porta dos prédios ou nas varandas. Vi que toda a gente caminhava devagar. Não durante o dia, em horário de expediente, mas depois das seis, quando muitos já estão a regressar a casa. Em vez de ficarem recolhidos e ensimesmados, distraídos com as inúmeras solicitações virtuais, saíram de casa. E tenho a certeza de que, quando anoiteceu, à luz de velas, muitos pegaram num livro, num jornal, numa revista, num baralho de cartas, num bloco de notas, num rádio a pilhas, memórias de um mundo analógico para uns, descobertas inéditas para outros. As horas passaram lentamente, o sono chegou mais cedo, o silêncio fez-se ouvir.
Será sempre utópico voltar a um mundo sem smartphones, e sei que, a maioria de nós, assim que a luz voltou, correu para eles, ávidos de notícias, memes, imagens da quietude. Sei que, por muito que alguns se queiram desligar, a pressão social para voltarmos ao mesmo hábito será brutal. O que vi ontem da minha janela só aconteceu, porque foi um fenómeno universal. Aconteceu a todos ao mesmo tempo. Não basta meia dúzia de pessoas tentarem replicar aquelas horas desligadas, por muito inspiradas que se sintam hoje, se todos à sua volta continuarem escravos digitais. É importante criar bolhas analógicas que nos obriguem a parar, a desfrutar do mundo que se desenrola à nossa frente, no nosso tempo e espaço físico.
E isso remete-me para uma preocupação para com as gerações mais novas. É essencial proibir a utilização de telefones dentro de TODOS os estabelecimentos de ensino, do 1º ao 12º ano. Criar um sistema que obrigue os alunos a deixarem o aparelho numa caixa ou cacifo, e quando saírem, logo podem ligar aos pais (desculpa número um para dar telemóveis aos filhos) e usar como entenderem. Para que, pelo menos naquelas horas em que estão na escola, eles estejam a viver o presente como aconteceu hoje. Atentos às aulas e atentos aos outros no recreio. A correr, a saltar, a inventar jogos e brincadeiras, a conversar olhos nos olhos. Cansa-me o argumento de muitas escolas e colégios (incluindo o dos meus filhos) de que cabe aos pais proibir ou não o uso do telemóvel. Errado. Mesmo os pais que proíbem, sabem que os filhos estão a usar os telefones dos outros, a ver pornografia, a ver shorts em contínuo, a aceder a redes sociais muitos anos antes de terem maturidade fazê-lo. É uma luta vã, que muitas vezes, em vez de proteger os filhos, só serve para os colocar na mira do bullying, por serem diferentes. Por serem os únicos sem telefone ou redes sociais, alienados das conversas que decorrem nos grupos de WhatsApp ou das tendências que viralizam não sei onde.
Gostaria muito que as pessoas com poder de decisão, no meio do caos que deve ter sido controlar um país em que nada funcionou durante onze horas, também tivessem olhado pelas suas janelas e visto o que eu vi. Um mundo em que pessoas de todas as idades estiveram nas ruas a fazer aquilo que os humanos fazem tão bem há milhares de anos sem ajuda de qualquer tecnologia: conversar, caminhar, conviver. Com tempo.

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