Andamos zangados

Durante a pandemia tive a ingenuidade de escrever que poderíamos sair daquilo mais unidos. Estávamos todos no mesmo barco, entre restrições, saudades e espanto. Brancos e pretos, pobres e ricos, unidos na mesma desgraça mundial. Tentávamos ajudar o próximo, colávamos arco-íris nas janelas, batíamos palmas aos profissionais de saúde. E, no entanto, mal o pesadelo acabou, parece que esquecemos tudo.

Na minha opinião, enquanto seres humanos, ficámos piores: mais egoístas, cínicos e, acima de tudo, zangados. E claro que há muitas razões para tal. Não temos casas, nem salários, nem reformas dignas. Não temos respostas céleres nos hospitais, creches e tribunais. Não temos soluções para o colapso climático, o genocídio em Gaza, a guerra na Ucrânia e outras desgraças que tais. Não temos esperança. E como estamos zangados, descarregamos nos outros, que por sua vez descarregam em outros, perpetuando este ciclo infernal.

Descarregamos no caixa do supermercado porque passou uma grávida à nossa frente, e gravidez não é doença; descarregamos no carro da frente que não anda, apesar de o sinal estar verde há quatro segundos; no porteiro do centro de saúde, porque não havia mais senhas e nos mandou voltar noutro dia; no colega do lado, porque usou o último pacote de chá; no vizinho de cima,  porque tem sempre a televisão demasiado alta; na professora, porque não avisou qual a matéria que ia sair no teste e o nosso filho teve negativa; no sem-abrigo, porque teve logo de se instalar à nossa porta; no empregado do restaurante, porque não sabe falar português.

Estamos tão zangados que acreditamos naqueles que nos dão mais razões para manter o cenho franzido, que gritam alto e cospem frases feitas e bodes expiatórios. Estamos tão zangados que ficamos a discutir com desconhecidos durante horas em caixas de comentários virtuais. E deixámos de sorrir. E de dizer bom dia a quem passa.

Mas agora imaginem o ciclo que criaríamos se, em vez de descarregarmos a nossa fúria nos outros, descarregássemos bondade? Sim, bondade, do tipo que se manifesta através de coisas simples como sorrisos, elogios, dois dedos de conversa ou ajuda para carregar os sacos. Bem sei que é difícil sorrir quando acabámos de perder o emprego, o namoro, um amigo. Todos passamos por momentos tristes ou fases em que parece que nunca nada se irá resolver. Porém, mesmo nessas alturas, não seria mais fácil se à nossa volta sentíssemos boas energias? Se um desconhecido nos oferecesse um lenço para limparmos as lágrimas ou dissesse uma piada que nos faz rir à gargalhada?  

A energia necessária para dizer mal é exactamente a mesma que precisamos para dizer bem. O grupo muscular usado para franzir o sobrolho é o mesmo que usamos para esboçar um sorriso. Chama-se musculatura mímica. São vinte músculos todos ligados. Assim como nós, humanos.