Dia de São Valentim

(conto escrito para o Clube das Mulheres Escritoras)

Hoje não vou receber rosas. Nem bombons. Nem um jantar à luz das velas.

Também não vou encontrar uma carta de amor na caixa do correio, nem um mísero postal em tons de rosa e vermelho, com o interior já escrito para que o remetente não perca muito tempo a encontrar as palavras certas, como se houvesse palavras certas para dizer o que se sente.

Na verdade, não é só hoje. Nunca recebi uma carta de amor. Nem mesmo quando, nas aulas de inglês, havia a tradição estúpida de enviar cartas anónimas entre turmas. «Let’s celebrate Valentine’s Day», anunciava a teacher, inundando-nos durante uma semana com vocabulário da época. «Heart, diferente de art, atenção à pronúncia.». E nós a escrevermos My sweet Valentine, seguido de um chorrilho de lamechices cheias de erros ortográficos e declarações infantis. «E quem não quiser enviar?», perguntava eu, as mãos suadas, a vergonha a apertar-me as entranhas só de imaginar o que seria se o Samuel descobrisse que eu gostava dele. O Samuel era dois anos mais velho e jamais olharia para mim, uma gorda cheia de borbulhas na testa e cabelo oleoso, por mais que o lavasse. O Samuel namorava com uma das miúdas mais giras da escola, daquelas que parecem saídas da capa de uma revista mesmo quando vestem umas singelas calças de ganga e uma T-shirt branca. Eu tentava imitá-las, mas parecia sempre um trambolho, com os refegos pendurados na cintura e as mamas demasiado grandes, espalmadas pelo soutien demasiado pequeno. «Todos têm de enviar. Conta para a nota», respondia a teacher, com um sorriso que a mim me parecia maquiavélico, como se lhe desse prazer a nossa humilhação. Sinceramente, qual era a graça daquilo?

E o pior nem era escrever uma carta de amor em inglês para enviar a um miúdo qualquer, inventando uma caligrafia para que ninguém conseguisse descobrir quem era o remetente. O pior era quando, na aula seguinte, a teacher distribuía as cartas que a nossa turma tinha recebido. As meninas bonitas, encantadas, algumas recebendo mais de que uma. Corações de cartolina, papel perfumado, confettis… e o meu nome nunca era pronunciado.

Minto. Houve um ano em que recebi um poema:

Roses are red

Violets are blue

Whales are fat

And so are you.

Havia sempre algum engraçadinho que enfiava mensagens maldosas na caixa das cartas, sem que os professores se apercebessem. E nem assim alguém achou melhor acabar com a brincadeira.

Quero lá saber. Como disse Álvaro de Campos, «todas as cartas de amor são ridículas» e, nos dias que correm, décadas passadas sobre aqueles bancos de escola, o amor declara-se por mensagens de WhatsApp. Amor líquido*, que nos escapa entre os dedos. «Amo-te» e muitos emojis com corações e carinhas sorridentes a mandar beijinhos.

Suponho eu. Nunca ninguém disse que me amava. «Gosto de ti», ouvi muitos; «quero-te», também, sobretudo quando deixei os quilos a mais enterrados na adolescência, trazendo para a vida adulta apenas as boas mamas. Mas nunca um «amo-te». Será que só as mulheres bonitas o ouvem de vez em quando? Ou fui eu que fiz sempre as escolhas erradas?

Quero lá saber. Essa «chama que alenta e consome»** é uma invenção dos Românticos. Já está duzentos anos ultrapassada. Tal como este dia estúpido, com origens que remontam a mitos cristãos e pagãos, antigos e medievais, tudo misturado, capitalizado por uma americana que só queria vender postais. Espero que tenha morrido afogada em cartas, as pontas dos dedos cheias de cortes de papel.

Roses are red

Violets are blue

I hope you burn in Hell

And take this day with you.

©Banksy

*teoria do filósofo Zygmunt Bauman

**do poema Este inferno de amar, de Almeida Garret

(Leiam os outros textos inéditos de Célia Correia Loureiro e Rita da Nova aqui)