«E se eu morrer amanhã?» – primeiro capítulo

Quando o telemóvel tocou, às três e vinte da madrugada, Luísa soube por instinto que se tratava de uma má notícia. Sentou-se na cama, sobressaltada, e tacteou a mesa-de-cabeceira à procura dos óculos, para conseguir ler o nome que gritava no visor.

— Marília? O que se passa? — perguntou, assustada.

— Houve um incêndio em casa da tua mãe — respondeu a cunhada, que ia no carro, pelo menos a julgar pelo barulho de fundo.

— Um incêndio?! Oh, meu Deus! Ela está bem?

— Sim, ligou-me quando ia a caminho do hospital, mas estava com uma voz serena.

— Hospital?

— Devido à idade, querem garantir que os pulmões estão bem tranquilizou Marília. — Estou a ir para lá agora.

— Também vou!

— Não, espera! Tu tens de ir até ao apartamento para verificares os estragos e veres se consegues trazer a carteira dela, roupa e essas coisas.

— E o Rui?

— Não está cá esta semana.

— Oh, bolas… — deixou escapar Luísa, desiludida. — Bom, então… até já.

Enquanto se vestia com a roupa do dia anterior, resgatada do chão da casa de banho, e fazia uma lista mental das coisas de que a mãe precisaria, Ricardo acordou, estremunhado, e ficou à espera de que a mulher lhe indicasse se era preciso mexer-se ou não. Dos lábios dela, ouviu incêndio… hospital… a mãezinha está bem… tenho de ir a casa dela… deixa-te estar, pelo que apenas garantiu que estaria atento ao telefone e voltou-se para o outro lado. Luísa correu até à porta, arrancando a mala do cabide, vestiu o primeiro casaco que agarrou e percebeu que as chaves do carro não estavam no móvel da entrada, como era suposto. Suspirou, irritada, e entrou no quarto da filha sem acender a luz, vasculhando os bolsos das calças dela, onde suspeitava que ela as teria deixado, esquecidas, como era seu hábito. Fingiu não reparar no cachimbo de água que estava sobre a mesa-de-cabeceira. Queria acreditar que era apenas decorativo, mas… e se não fosse? Estaria a filha a consumir algum tipo de droga? Deveria falar com ela sobre o assunto? Afastou tais pensamentos com firmeza, até porque tinha preocupações mais urgentes com as quais lidar. Afinal, a filha já era uma mulher de vinte e dois anos. Uma estudante dedicada, a caminho do terceiro curso superior (embora não tivesse terminado nenhum dos outros), e que nunca se tinha metido em problemas. Vivia da mesada que os pais lhe davam e de um part-time a passear cães na vizinhança, é certo, e não tinha planos para sair de casa nos próximos dez anos, como milhões de outros jovens da sua idade, mas era importante respeitar o seu espaço e assumir que era uma adulta com quem partilhavam a casa. De graça. Fechou a porta devagar atrás de si, de modo a não perturbar o sono da filha, e pôs-se a caminho do apartamento em chamas.

O único lado positivo de coisas como esta acontecerem às tantas da manhã é não haver trânsito na estrada e os semáforos estarem em modo intermitente, pensou Luísa, enquanto acelerava pelas ruas vazias e quase irreconhecíveis à luz da noite. Os prédios ganhavam todos a mesma tonalidade amarela da iluminação nocturna e a quietude permitia escutar o deslizar dos pneus no asfalto. Sem buzinadelas, sem pára-arranca, sem protestos do carro de trás, conduzir até se tornava uma actividade agradável. Em apenas cinco minutos, chegou à porta de casa da mãe, onde os bombeiros já estavam a terminar o seu trabalho e a prepararem-se para partir. Um deles estava a falar com um vizinho, que Luísa nunca tinha visto antes e que estava encostado à parte de trás de uma ambulância. Era um homem alto e bem-parecido, pese embora a idade avançada. Envergava umas calças de ganga e, por cima, apenas um roupão de seda florido e vaporoso.

— Desculpe interromper, o meu nome é Luísa, sou filha da senhora que foi levada para o hospital — disse ela, dirigindo-se ao bombeiro.

— Ah, bom, então, estava aqui a explicar ao seu pai…

— Pai? — interrompeu Luísa. — Eu não conheço este senhor de lado nenhum!

— Jaime Cortês — disse o homem de robe de seda, estendendo a mão. — Sou o… vizinho.

Luísa olhou-o com estranheza e, sem responder, voltou-se de novo para o bombeiro.

— Já terminaram tudo? É seguro a mãezinha voltar para casa?

— Bom, hoje não voltará de certeza! — respondeu o bombeiro, num tom levemente trocista. — Embora o incêndio tenha ficado circunscrito à sala, são precisos vários dias até o fumo se dissipar totalmente, já para não falar da água. Amanhã, os peritos da polícia e da protecção civil virão verificar o estado da fracção e se há danos nas fracções adjacentes ou zonas comuns. Também virá o perito dos seguros, sabe como é. Depois, convém fazer umas obras de reparação e de pintura, o tecto está todo negro, mas, primeiro, a água tem de evaporar bem, senão, empola. Enfim, é coisa para, no mínimo, três semanas.

— Três semanas? E, até lá, onde é que a mãezinha fica?

— Olhe, não tenho nada que ver com isso, mas, em vez de se preocupar com onde ela fica, devia estar agradecida por a sua mãezinha estar bem e o fogo não ter atingido outras casas. Estes incêndios a meio da noite com pessoas idosas normalmente não acabam bem.

— E posso, ao menos, ir lá acima buscar as coisas dela?

— Um elemento da nossa equipa já esteve lá. Trouxe os documentos e alguns objectos pessoais para a sua mãezinha — respondeu o bombeiro, estendendo-lhe um saco de pano.

Luísa espreitou, incrédula, para o conteúdo do saco. Estavam lá os documentos, os óculos, uma camisa de dormir, roupa interior, umas pantufas, um casaco, umas calças, uma blusa, a escova de dentes, a escova de cabelo e um hidratante de rosto. Luísa interrogou-se como teriam os bombeiros encontrado tudo tão facilmente. Devem ter andado a abrir todas as gavetas, pensou, indignada, a imaginar as mãos enormes e cobertas de fuligem a devassar a intimidade da sua mãezinha. O que valia era que, na idade da mãe, não havia nada a esconder. E as jóias estavam no cofre. Voltou para o carro, preocupada, olhando para a janela da sala do terceiro andar, antes adornada com cortinas floridas, agora um buraco enegrecido. Parecia-lhe que o bombeiro tinha sido optimista quando falou em três semanas. Ainda por cima era Agosto. Onde iria encontrar alguém disponível para fazer a obra de reparação? Tinha de falar com Marília sobre quem tomaria conta da mãezinha até o arranjo estar concluído. Certamente, a cunhada e o irmão, que viviam numa casa com vários quartos vazios. Se bem que teria de esperar que o Rui regressasse para tocar no assunto. Incrível como, sempre que havia uma crise familiar, o irmão não estava. Sobrava tudo para ela. Sem-pre. De repente, veio-lhe à memória uma frase que amiúde ouvia a avó dizer à mãezinha: «Ainda bem que tiveste uma menina para cuidar de ti na velhice.» Será que a necessidade que sentia de cuidar da mãe lhe fora incutida por frases como essa, ou faria parte do código genético feminino? Estariam as mulheres geneticamente e irremediavelmente programadas para cuidar dos outros? Filhos, pais, maridos? Mas, nesse caso, porque era sempre para casa do irmão que a mãe ligava quando precisava de alguma coisa? Deixou-se levar por tais divagações, enquanto se dirigia ao hospital.

Assim que passou pela porta das urgências, afogueada, Luísa encontrou a cunhada sentada na ponta de uma cadeira da sala de espera, com um ar enjoado, como se, ao recostar-se e respirar normalmente, pudesse ser atingida pelas maleitas dos doentes com quem partilhava aqueles metros quadrados.

— Obrigada por teres vindo para cá, Marília. Já estiveste com ela? — perguntou, preocupada.

— Não, ainda está lá para dentro, em observação — respondeu a cunhada. — Mas, quer dizer, isto é coisa para durar horas, a julgar pelo que se vê aqui. Aquele senhor está praticamente a falecer e ainda ninguém o veio ver. E o outro tem um olho ao peito não tarda. Ali, estás a ver?

Luísa ignorou o comentário da cunhada.

— Já conseguiste falar com o Rui? Como é que isto aconteceu? — Não sei, ao telefone, ela disse-me que está óptima, não tem nem um arranhão, só a sala é que ardeu, porque deixou a lareira acesa sem a guarda e pegou fogo à carpete.

— Lareira acesa? Em Agosto? Ai, meu Deus, eu sabia! A mãezinha não está bem!

— Achas?

— Claro que acho! Quem é que acende a lareira em Agosto? E anda meio distraída, sempre a esquecer-se das coisas…

— Agora que falas nisso, já por mais de uma vez se esqueceu de que tinha um almoço na nossa casa — recordou Marília.

— Sabes, este ano nem deu os parabéns ao Ricardo, imagina! — Na verdade, isso também já me aconteceu. Sou péssima com aniversários.

— Bom, isso não interessa agora. O que temos de saber é para onde é que a mãezinha vai nas próximas semanas. O bombeiro disse-me que o fogo não passou da sala, mas, ainda assim, vai ser preciso arranjar o chão, pintar o tecto…

— Não me digas!

— Eu posso ficar com ela por agora, mas depois ela vai ter de ir para a vossa casa. Nós vamos de férias dentro de dias.

— Como assim? O teu irmão não está cá! Não vou ser eu a tomar conta da vossa mãe, ainda para mais, demente!

— Mas…

— Luísa, tem paciência — respondeu Marília, com naturalidade. — Não me posso responsabilizar sozinha. Quando o Rui voltar, logo decides isso com ele. Mas lembra-te de que o gato não fica lá. Tenho imensa alergia.

— O gato! — gritou Luísa, com enorme preocupação.

— Morreu?

— Não sei, não vi gato nenhum! Ai, Marília, se o gato morreu, a mãezinha vai ter um desgosto — choramingou Luísa.

— De certeza que não morreu, os gatos têm sete vidas — respondeu a cunhada, pouco solidária com a preocupação pelo bem-estar de um animal que detestava.

Ao fundo do corredor, abriu-se a enorme porta onde estava escrito em letras garrafais: «Não passar. Acesso restrito.» De lá, surgiu uma auxiliar do hospital mal dormida a empurrar uma cadeira de rodas, na qual uma senhora de aspecto frágil, mas sorridente, estava confortavelmente sentada. Luísa reparou que vestia uma bata de hospital e que tinha pousado no colo algo que se assemelhava a um lençol de padrão exótico, cuidadosamente dobrado.

— Não me diga que a mãezinha vai ter de ficar cá… — lamentou-se Luísa quando a auxiliar parou a cadeira de rodas à sua frente.

— Estou óptima, filha — respondeu Helena. — Podemos ir.

— Mas a mãezinha está de bata — notou Luísa. — Vai ser internada, não vai?

— Não — interrompeu a auxiliar. — A senhora está de bata porque vinha apenas enrolada no lençol. Não temos roupa para lhe vestir.

— Oh, Helena, que vergonha — exclamou Marília. — Não me diga que saiu assim de casa, enrolada num lençol?

— Querias que ficasse no meio do fogo a vestir-me?

— Mas porque é que não estava de pijama? Agora dorme nua, é? Na sua idade? — insistiu Marília.

— Então, mãezinha? — interrompeu Luísa, num tom mais alto do que aquele que usava para falar com as outras pessoas. — Estava com calor por causa da lareira, não estava? — perguntou, segurando a mão da mãe. Depois olhou para a cunhada, levando o indicador junto da têmpora, desenhando com ele pequenos círculos no ar.

— O Chopin? — perguntou Helena, mudando de assunto.

Luísa temera por aquela pergunta. Não fazia ideia onde se teria metido o bicho, se estava morto ou vivo. Na verdade, nem sequer se lembrara de procurá-lo. Melhor dizendo, nem sequer se lembrara de que a mãe tinha um gato. Provavelmente, o bicho fugira, assustado, como fazem todos os animais quando sentem perigo. Tanto podia já ter regressado a casa, como aproveitado para saborear a liberdade. Para sempre.

— Não se preocupe, mãezinha — continuou Luísa, falando devagar. — Já vamos tratar de tudo. O que importa é que está bem.

Findas as burocracias para a alta hospitalar, o dia raiava quando saíram do hospital. No caminho para casa, Helena insistiu em encontrar o gato, que não iria dormir enquanto não o encontrasse, ameaçando mesmo fugir para ir procurá-lo, pelo que Luísa teve de se dirigir novamente ao apartamento carbonizado. Felizmente, o bicho saiu de debaixo de um carro assim que ouviu a voz da dona. Saltou-lhe para o colo e ali foi, aninhado, todo o caminho. Em vez de ficar aliviada e feliz pela mãe, Luísa ficou a pensar se o gato arranharia os sofás. Olhou para a mãe pelo canto do olho e notou que ela sorria, como se estivesse alheada da gravidade do que acabara de acontecer. Sentiu o coração apertado e os olhos marejados de lágrimas. Estaria na altura de consultar um psiquiatra, para atestar a saúde mental da sua progenitora?

One thought on “«E se eu morrer amanhã?» – primeiro capítulo

  1. Nunca me arrependo dos minutos que levo a ler estes bocadinhos de prosa. Continua a não me desiludir com os seus escritos. Gosto muito da fluidez com que escreve e gostava de ter os seus livros. Parabéns e cumprimentos. Confinue a mandar bocadinhos dos seus escritos. O meu email agradece-

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