Inteligência Artificial: aliada ou ameaça?

Na última edição do Book 2.0, uma das talks que mais me interessava assistir era a de Nadim Sadek, sobre a Inteligência Artificial enquanto parceiro criativo. Sadek é o Fundador da Shimmr AI, uma empresa de publicidade autónoma, que cria e implementa campanhas para vender livros. É também autor de várias obras de não-ficção sobre o tema. Não é por isso de estranhar, que os seus vinte minutos no palco tenham sido uma entusiástica apologia do uso da Inteligência Artificial (IA) em qualquer ramo de atividade e, sobretudo, da criatividade.

Segundo o autor, toda a gente tem ideias, desde a pessoa mais erudita, ao pastor analfabeto. O que aconteceu até agora é que apenas alguns, pela sua educação, posição ou veia empreendedora, conseguiam dar vida às mesmas, mas com a IA, qualquer pessoa pode pô-las em prática com apenas algumas prompts, seja escrever um livro, seja fazer um filme, construir um website ou criar uma marca. Para ele, a IA emancipa a criatividade humana, porque contém a essência de todo o conhecimento humano e, assim, pode ser uma companheira com quem se inicia um diálogo e nos guia com informação ilimitada sobre todos os assuntos que algum dia foram abordados pelos homens. Propõe mesmo que se passe a designá-la por Inteligência Aliada.

Depois, Sadek deu exemplos de coisas que a IA já faz e que continuará a fazer cada vez melhor, nomeadamente no mercado editorial: revisão de textos, tradução, gestão de direitos, optimização das cadeias de produção e de distribuição, marketing digital, design de capas, adaptação de obras a audiolivro, ou até selecção automática de manuscritos. (Tirem notas, para saberem que profissões vão deixar de existir dentro da indústria nos próximos anos.)

Por fim, terminou com uma mensagem politicamente correcta, dando conta de que a IA ainda tem vários problemas como as alucinações e os direitos de autor, mas que, se em vez de resistirmos aos seus avanços, nos focarmos em estabelecer uma ética, criar modelos e definir boas práticas, estará tudo bem.

Tenho dúvidas. Bem sei que as tecnologias quando aparecem, ficam, e a IA já está implementada em todas as áreas da nossa vida e assim continuará. Mas este discurso de que não faz mal usar a IA seja em que área for, e que é só uma ferramenta para nos ajudar, é perigoso, porque, ao contrário de outras tecnologias, a IA alimenta-se a si própria e não há como a travar. É um sistema complexo do qual apenas estamos a ver os dedos dos pés. Sim, tem potencial para fazer coisas incríveis, e resolver problemas sérios, como a gestão de recursos, planeamento urbano eficiente, cura de doenças, mas também tem o potencial de dizimar a espécie humana, a qual, aliás, é a causadora da falta de recursos, de falta de planeamento urbano e de centenas de doenças.

Mas voltando à criatividade e às atividades artísticas. Sadek diz que a IA nunca será uma ameaça porque não tem emoções. É um mero parceiro criativo a quem podemos perguntar, por exemplo, se o nosso texto está coerente, qual o caminho menos óbvio para certa personagem, quais são os passos de uma cirurgia cardiovascular de modo a descrevermos uma cena com mais rigor. Discordo também deste ponto. A IA (ainda) não tem emoções, mas pode simulá-las, tal como simula empatia quando falamos com ela. Além disso, a IA alimenta-se de tudo o que existe na internet, sem perguntar aos seus criadores se concordam com a utilização, e sem pagar direitos de autor. Ou seja, a palavra mais correcta para o que actualmente faz é «roubar». Em última análise, e no que toca a livros, uma pessoa pode ter uma ideia para uma história e, sem saber juntar dois parágrafos decentemente, pedir à IA para escrevê-la ao estilo do autor Y, e depois editá-la, corrigi-la, desenhar a capa, fazer um plano de marketing e distribuição, um vídeo e vários posts de promoção e até inventar uma cara e uma biografia para o autor, caso não queira dar a sua. Depois traduzi-la em várias línguas, fazer os audiolivros, ebooks ou impressão on-demand, e, em poucas semanas, inundar o mercado com mais um livro, quem sabe, até um best seller.

A minha questão é: poderemos chamar a este tipo de ajuda um aliado da criatividade? Ou será antes a redução da criatividade a fórmulas batidas e cópias baratas? Queremos mesmo ler livros escritos desta forma? Iremos a concertos de robôs? A exposições de quadros feitos por uma máquina? Veremos filmes com actores virtuais? Mais importante: estamos preparados para que os nossos filhos e netos se tornem pessoas acríticas, que não precisam de se esforçar para nada nem puxar pela cabeça para resolver problemas ou dilemas criativos? Gerações que perderão a capacidade de imaginar, de experimentar e de descobrir caminhos por si só?

Dizem os defensores da IA que todas as ferramentas criadas pelo homem podem ser usadas para o bem ou para o mal. A faca corta a comida, mas também pode matar. Certo. Mas já devíamos ter aprendido alguma coisa com tecnologias que são propriedade de duas ou três empresas no mundo. Quando as redes sociais apareceram, também pareciam uma óptima ideia. Passámos a poder divulgar o nosso trabalho, criar comunidades, falar com amigos que estão do outro lado do mundo, assistir a concertos, palestras, filmes. Mas pouco mais de uma década depois, o que também temos é uma geração ansiosa, dependente de dopamina, bem como a homogeneização do pensamento, a amplificação dos preconceitos, a intromissão em processos eleitorais, a disseminação de fake news, a alucinação não só da máquina, mas sobretudo dos homens.

Sim, não podemos travar a IA, mas é urgente definir regras muito sérias e apertadas, que protejam não só os artistas, cientistas, designers, inventores, mas toda a humanidade. A ética, os modelos e as boas práticas de que Sadek fala, já deveriam estar estabelecidas antes de terem soltado o mostro.