Eu sei que estão muito revoltados com os resultados das eleições, eu também estou e não sou de esquerda (nem de direita, já agora). Acho que qualquer pessoa com discernimento suficiente para não acreditar em populismos, para recusar viver numa sociedade onde o ódio e o bullying imperam, para não se rever na maneira baixa e inconsequente de fazer política de um homem desvairado de sede pelo poder, está neste momento a sentir um enorme pesar.
Infelizmente, conheço de perto muitas pessoas que votaram no Chega, e confesso que, nos últimos meses, desisti de sequer tentar argumentar com elas, porque sei que são poucos os que conseguem admitir que estão a cometer uma verdadeira atrocidade. Porém, ao contrário do que muitos de vós têm estado a dizer, sei que nem todos são ignorantes, homofóbicos, racistas, taberneiros, feios, porcos e maus (ainda que vários sejam, efectivamente). Muitos dos que votaram no Chega são pessoas a quem a esquerda, e sobretudo o PS, também tendencialmente de esquerda, não serviu nos últimos 30 anos.
São pessoas que vivem na periferia da periferia, que acordam às cinco da manhã para ir trabalhar e não têm transportes decentes; cujos filhos estão um trimestre inteiro sem professor em escolas onde chove nas salas; cujos pais não conseguem marcar consultas nem têm dinheiro para aviar os medicamentos. São pessoas que têm de se mudar para cada vez mais longe dos seus locais de trabalho, que vivem das promoções dos supermercados, que se endividam para ir de férias, que não conseguem desfrutar de uma refeição num restaurante. São jovens inexperientes e com pouca cultura política que crescem a ouvir dizer que terão de emigrar, que terão de viver com os pais até aos quarenta anos, que não poderão ter filhos se assim entenderem. São indivíduos cujo único acesso à cultura é música popular nos bailaricos promovidos pelas juntas de freguesia, que têm pudor em entrar em bibliotecas, que não têm museus nem teatros perto de si, e que, por isso, ficam em casa a consumir conteúdos digitais de processamento rápido e a ver telenovelas e futebol. Ao mesmo tempo que vivem estas vidas onde o espaço para sonhar é cada vez mais pequeno, ouvem a esquerda trazer para o debate temas que não vão resolver nenhum dos seus problemas prementes.
Quando o dinheiro não estica até ao fim do mês, é difícil preocuparmo-nos com os direitos LGBTQ+, com a luta climática, com as causas feministas, com o fim do alojamento local, com as condições indignas em que vivem imigrantes ilegais. É difícil preocuparmo-nos com o Holocausto que está a acontecer em Gaza, com a interminável guerra na Ucrânia ou com qualquer outro problema que exista para lá da nossa fronteira, para lá do nosso quintal. Quando não se sabe se vamos conseguir pagar as próximas rendas, é difícil compreender que o Estado dê um subsídio de integração a um imigrante, que haja camas e blocos ocupados com estrangeiros, que haja casas para quem praticamente nunca descontou. Acredito que muitas das pessoas que votaram no Chega não são insensíveis a estas questões. Provavelmente, até estão solidárias com algumas destas lutas e dores, mas quando o dia-a-dia é de sobrevivência, não há espaço para aquilo que pode ser considerado problemas do primeiro mundo.
Este é um país de miséria, com cada vez mais pobres e uma classe média a perder poder de compra de ano para ano. Um país envelhecido e com um Estado depenado que não tem como atender a todas as solicitações. Terreno fértil para intolerância, bodes expiatórios e ideias de salvação perniciosas.
Acabemos, então, com as ideologias bacocas e fantasiosas. Arregacemos as mangas para apresentar soluções viáveis em vez de correr atrás de utopias. Para educar os jovens para que sejam cidadãos conscientes em vez de nivelar pela mediocridade. Para encontrar compromissos que façam o país crescer em vez de diabolizar a iniciativa privada. O Estado Social morreu. É urgente encontrarmos alternativas a um segundo Estado Novo.

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