Às onze no Avenida Palace

A mulher entrou no táxi disfarçando um certo nervosismo. Era uma mulher vistosa, de idade avançada, vestido azul-petróleo com um profundo decote dissimulado por um colar de várias fiadas de pérolas. Os lábios estavam pintados de vermelho, e o perfume elegante que exalava sobrepunha-se ao enjoativo ambientador em forma de árvore, que balouçava no retrovisor. Sempre se questionara se tal penduricalho não seria uma distracção para o condutor, mas certamente era só impressão sua, uma vez que tantos taxistas o penduravam precisamente ali.

Quando fechou a porta, Manuel estava com os olhos colados nos botões do auto-rádio, sintonizado na transmissão de um jogo de futebol, como se, fixando ali o olhar, conseguisse ver a partida.

— Boa noite. É para o Hotel Avenida Palace, por favor.

Manuel levantou os olhos e ficou deveras surpreendido por ver uma senhora daquela idade tão bem-apessoada. Presumiu que fosse uma artista ou socialite e, por momentos, desejou ter Maria José ao seu lado, para esclarecer de quem se tratava. Por certo, iria reconhecer a figura de uma daquelas revistas que adorava folhear. Endireitou-se no banco, pigarreando, empenhado em presenteá-la com o seu melhor comportamento.

— Desculpe lá o sonoro, minha senhora, é que está a jogar o meu Benfica, ‘tá a ver? Mas já está no prolongamento.

— Que engraçado, não fazia ideia de que havia jogos a esta hora. Onze da noite de um dia de semana, ninguém merece.

— Pois, tem razão, ninguém merece, um gajo assim nem pode ir ao estádio, mas sabe como é, isto das transmissões televisivas, dá muita guita, e os clubes aceitam tudo, querem lá saber se é tarde ou é cedo. De qualquer forma, eu também não posso ir ao estádio, por causa do meu coração, ‘tá a ver? Fico muito enervado, e o médico já me disse para ter calma comigo. Mas olhe, vou mudar já, já, para uma musiquinha, sim? Não tem de ir aqui a levar com futebol, que a vitória não vai escapar e amanhã logo leio A Bola. O que é que a senhora gosta de ouvir?

— Er, bom, eu gosto de muitas coisas diferentes, mas talvez música clássica, para me acalmar um pouco — respondeu a mulher, suspirando.

— Música clássica? Com certeza — assegurou Manuel, começando a rodar o botão pelas estações. — Vamos lá ver, sei que a Antena 2 está sempre a dar óperas e essas coisas. Até nem desgosto, mas ao fim de um bocado aborrece-me, sabe? E para quem anda na estrada isso é fatal, ó se é! Eu cá prefiro ir ouvindo um faduncho. Gosto muito da rádio Amália. Mas então, diga-me lá, porque é que precisa de se acalmar? Quer dizer, se não se importa que eu pergunte…

— Não me importo nada. Longe vai o tempo em que me importava com a opinião dos outros. Estou um pouco nervosa, porque vou a caminho de um primeiro encontro.

— Um primeiro encontro? Mas encontro de quê, se me permite a pergunta?

— Ora, um encontro amoroso, o que é que haveria de ser?

Pela primeira vez em tantos anos como taxista, Manuel ficou sem resposta. Mas a mulher era atrevida, e continuou.

— Já sei o que está a pensar. Que uma senhora como eu, a esta hora da noite, devia era estar em casa a beber chá e a ver telenovelas, não é verdade?

— Não, quer dizer, cada um sabe de si. Quem sou eu para julgar! Estava era a pensar que, para primeiro encontro, uma senhora assim mais… vá, sénior, ia preferir um cafezinho a meio da tarde ou coisa parecida…

— Depende da senhora — replicou ela, por entre uma sonora gargalhada. — Agora a sério, percebo o que diz, mas na minha idade não tenho tempo a perder com cafezinhos. Eu gostei dele, ele gostou de mim, e pronto, vamos conhecer-nos, e depois logo se vê. E sim, entendo que seja difícil imaginar alguém como eu a ter encontros e namoricos. É por isso que nem conto nada aos meus filhos, Deus me livre!

— Então e se lhe acontece alguma coisa, não fica com receio? Olhe que eu, que trabalho à noite, sei de cada história…

— Por isso é que me vou encontrar no bar de um hotel. Não sou ingénua. Por isso e também para poder fugir airosamente se o fulano não me agradar.

— Então, mas não disse que gostou dele, e ele, de si?

— Pois, mas isso é na Internet. Sabe-se lá se a fotografia não é alterada, ou se o homem diz que gosta de Stravinsky só para impressionar.

— Internet? — perguntou Manuel, cada vez mais atordoado.

— Claro. Com a minha idade, onde é que acha que consigo conhecer pessoas com vontade de se divertir? E não me diga para ir aos bailaricos, que, no último a que fui, jurei para nunca mais.

— Por acaso, ia mesmo dizer…

— Pois, já dei para esse peditório. A Internet sim, é uma maravilha. Nunca pensei dizer isto, mas tem sido a minha salvação, para não morrer burra, se é que me entende. Há quem fique surpreendido por eu usar um site de encontros, mas, no fundo, não é muito diferente do que se fazia antigamente com os anúncios nos jornais. Uma pessoa coloca lá quem é e o que procura, e as outras, se estiverem interessadas, respondem.

— Olhe, tem graça falar nisso! Foi assim que os meus pais se conheceram. Sem tirar nem pôr. A minha mãe respondeu a um anúncio que o meu pai fez, e, um mês depois, estavam casados. E assim estiveram durante cinquenta e dois anos.

— Oh! Coitadinha da sua mãe…

— Como assim?

­— Nada, esqueça. Isto é dos nervos — disfarçou ela.

— Bom, estamos a chegar. Quer que espere um bocadinho à porta, para o caso de o pretendente não lhe agradar?

— Não, obrigada pela gentileza, mas tenho um feeling de que este não me vai desapontar. É francês, sabe?

— De qualquer forma, deixo-lhe o meu cartão — disse, estendendo um pedaço papel brilhante preto, no qual nome e número surgiam a letras douradas. — Se precisar que a venha buscar mais tarde, estou ao serviço até às quatro da manhã.

— Oh, muito obrigada. Manuel Correia, é? Vou guardar muito bem o seu cartão, que eu ando sempre de táxi de um lado para o outro. Mas não me olhe assim, que não são só encontros — advertiu. — Também vou ao cinema, ao teatro, saio com amigas…

— Pois, pois, estou cá a ver que tem uma vida muito agitada.

— Ai, pode crer que tenho. Se eu morrer amanhã, vou de papo cheio!

—  Ora então, são sete euros e oitenta, se faz favor, Sr.ª Dona…

— Helena! Aqui tem — disse, estendendo uma nota de dez e aproveitando o espelho do retrovisor para retocar o batom. — Pode ficar com o troco. ­

— Obrigadinho, Sr.ª Dona Helena. Fico à espera da próxima corrida.

— Obrigada eu, Sr. Manuel, que com esta conversa toda, até já me passaram os nervos.

Helena piscou-lhe o olho e fechou a porta do carro com delicadeza. Manuel deixou-se ficar a vê-la desfilar elegantemente até desaparecer para dentro hotel. Toda ela irradiava sob a luz da Lua.

(Este texto foi escrito para a newsletter literária do Clube das Mulheres Escritoras. O tema era ENCONTRO, pelo que decidi criar um entre o Manuel, protagonista de Amanhece na Cidade, e a Helena, a protagonista de E Se Eu Morrer Amanhã?. Que saudades eu tinha destes dois!)