Pela mudança do PNL

O meu filho começou a ler muito cedo e sempre foi um ávido leitor. Além das histórias que lhe contava ao deitar desde tenra idade, ele próprio ganhou o hábito de ler antes de dormir, e de pegar num livro em alternativa à televisão e aos aparelhos electrónicos. Do “Bando das Cavernas”, ao “Estranhão”, passando por todos os livros do David Walliams publicados em Portugal, o Tiago leu de tudo, incluindo biografias, História e livros de curiosidades. Até que entrou na puberdade.

Nesta fase tem sido difícil convencê-lo a ler. De vez em quando, a muito custo, lá segue uma das minhas sugestões (acabando por admitir que gostou muito), mas o discurso mais frequente é que ler é uma seca e é para NPC’s – um sinónimo de “cromos” desta geração. Eu percebo. Agora há consolas em que se consegue estar a jogar e a conversar com amigos, smartphones e respectivas redes sociais, milhões de conteúdos para ver no YouTube e nas plataformas de streaming, tudo acessível sem qualquer esforço. E depois, há os livros, maioritariamente lidos na escola: antigos, datados, com uma linguagem completamente obsoleta para estes “manos”, que já sabem mais a dormir do que as gerações anteriores com a mesma idade sabiam acordadas. Ou seja, de um lado, temos uma Disneyland de conteúdos e interacção cibernética; do outro, temos livros que já foram lidos pelos pais e, em alguns casos, pelos avós. Diversão VS aborrecimento. Mesmo para uma mãe escritora, é difícil convencer de que os livros também podem ser divertidos. (Além de que, nesta altura da vida, tudo o que os pais dizem é, obviamente, para ser ignorado.)

Há muito que tenho vindo a falar deste completo desfasamento entre a realidade de um pré-adolescente dos nossos tempos e os planos curriculares de Português, que continuam a explorar as mesmas obras há mais de trinta anos, como se nada de novo tivesse surgido na Literatura Portuguesa das últimas décadas. Fiquei feliz por verificar que o público aplaudiu em massa quando falei disto na conferência Book 2.0 e que, na mesma tarde e lugar, o Presidente da República fez questão de frisar o mesmo ponto: é urgente actualizar as obras curriculares de Português e modernizar o Plano Nacional de Leitura (PNL). Ou nas suas palavras «O PNL tem vindo a ser melhorado, mas está datado

Para quem não sabe, o PNL foi criado em 2006 e tem como objetivo dar uma «resposta institucional à preocupação pelos níveis de literacia da população em geral e em particular dos jovens, significativamente inferiores à média europeia».  O programa tem uma lista de recomendações de livros editados em Portugal, estando maioritariamente virado para o público escolar, embora desde 2017, estas listas incluam também sugestões de leitura para o público adulto. O PNL tem sido uma ferramenta útil sobretudo para os professores, que assim, com algum critério, conseguem sugerir obras de leitura complementar aos alunos nos vários níveis de escolaridade. Só que, sendo elaborado também por pessoas ligadas ao sistema e aos planos curriculares, o PNL continua a apresentar mais do mesmo: os mesmos autores, os mesmos géneros literários, os mesmos clássicos, a mesma falta de representatividade. Mais: o PNL pouco faz pelos autores portugueses, menos ainda por autores portugueses vivos.

Mas voltando ao meu filho, que ingressou no 8º ano neste ano lectivo. Recebi a lista de obras que vão estudar na disciplina de Português, a saber:

  • o Adamastor, de Manuel António Pina (ed.1998). Recentemente leram este autor com Os Piratas, escrito em 1986.
  • A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, Mário de Carvalho (ed.1983).
  • Saga, Sophia de Mello Breyner Andresen (ed.1984)
  • Diário de Anne Frank (excertos) (ed.1945)
  • Assobiando à Vontade, Mário Dionísio (ed. 1967)

Estão a ver um padrão? Nenhuma obra escrita no século XXI. Uma só mulher portuguesa, que aliás é a única que as crianças conhecem, já que todos os anos lêem uma obra dela, desde A Fada Oriana, ao Cavaleiro da Dinamarca.

A professora enviou ainda uma lista de obras para os alunos escolherem duas e ler durante o ano, e são elas:

Um Cântico de Natal, Charles Dickens (1843)

Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol (1865)

O Mandarim, Eça de Queirós (1880)

O Livro da Selva,  Rudyard Kipling (1894)

A Maravilhosa Miagem de Nils Holgersson através da Suécia, Selma Lagerlof (1906)

Capitães da Areia, Jorge Amado  (1937)

À Espera no Centeio, JD Salinger (1945)

O Deus das Moscas, William Golding (1954)

Mataram a Cotovia, Harper Lee (1960)

A História do Senhor Sommer, Patrick  Suskind (1991)

O Senhor Ibrahim e as Flores do Alcorão, Eric-Emmanuel Schmitt (2001)

A Rapariga que Roubava Livros, Markus Zusak (2008).

Os Livros que Devoraram o Meu Pai, Afonso Cruz,( 2010)

O Rapaz ao Fundo da Sala, Onjali Q. Rauf–  (2019)

Das 19 obras apresentadas apenas 4 foram escritas no século XXI e apenas 7 são de escritores contemporâneos. Também apenas 7 são de autores lusófonos, o que não deixa de ser surpreendente quando a disciplina é Português. No que toca ao género, das 19 apenas 5 foram escritas por mulheres e apenas 1 é de uma autora portuguesa.

Indignada com estes números, embora a lista apresentada tenha obras maravilhosas e algumas delas estejam na minha lista de melhores livros de sempre, fui ao site do PNL procurar as obras sugeridas para esta faixa etária, na esperança de que o problema fosse só das escolhas feitas pela escola do meu filho. Infelizmente, os números não são melhores.

Das 260 obras recomendadas para a faixa etária dos 12-14 anos, temos um equilíbrio entre autores clássicos e contemporâneos (cerca de metade/metade), mas temos 171 escritas por homens e apenas 89 escritas por mulheres.

Das 171 escritas por homens apenas 52 são de autores portugueses e outras 5 de lusófonos. Mas como alguns autores têm mais do que uma obra na lista, acabamos com apenas 46 autores de língua portuguesa. Das 89 escritas por mulheres há 45 obras de autoras portuguesas e duas de uma autora moçambicana.

A discrepância entre autores lusófonos e estrangeiros chega a ser ridícula: 187 obras estrangeiras vs 73 de autores lusófonos, o que espelha o que também se passa nos escaparates das livrarias e das bibliotecas deste país. O desprezo pela literatura lusófona é reflexo de um país ainda muito provinciano, que apenas valoriza o que vem de fora ou que é validado por quem não é de cá. No que toca às escritoras, é reflexo de uma sociedade que continua a não valorizar as mulheres.

O que estamos a ensinar aos nossos adolescentes com listas como estas?

1 ) Que as mulheres não escrevem bem, não têm coisas interessantes para contar, não conseguem «chegar lá».

2) Que a literatura estrangeira é mais rica e importante do que a literatura lusófona.

3) Que os livros só falam de coisas antigas ou então de realidades pouco familiares.

É essencial fomentar o gosto pela leitura nestas idades críticas em que tantos jovens abandonam os livros, muitas vezes para sempre. É importante que se revejam e sintam que os livros lhes podem dar respostas aos problemas que enfrentam e aos desafios que encontram, com vozes contemporâneas e diversas, bem como temáticas com que se consigam relacionar mais facilmente. Isto é, que não continuem a ser obras de homens, brancos, maioritariamente mortos e estrangeiros.

Os clássicos são clássicos porque falam de temas intemporais, porque existem para lá das nacionalidades dos autores e do tempo em que viveram. Devem ser estudados, sim, eternizados, claro. Mas mais importante do que conhecer os clássicos é ter amor aos livros e à leitura. É vê-la como uma fonte de conhecimento, mas também de diversão, inspiração e respostas às nossas angústias existenciais (que nos caso dos adolescentes são muitas). Quando alguém se torna leitor, nunca deixa de ser leitor, e, então, será mais fácil ler e entender as grandes obras da Literatura. A seu tempo, no seu ritmo.

Reafirmo a minha posição enquanto autora, que vai ao encontro da posição do Clube das Mulheres Escritoras e do próprio Presidente da República: para conquistarmos mais leitores e fomentar o gosto pela leitura é urgente modernizar as obras curriculares e as obras do PNL. Porque «ler de uma maneira é o caminho para ler de outra maneira» (Marcelo dixit).