Este é o primeiro Natal sem ti, mãe. E no entanto, não consigo ficar triste.
Andava ansiosa com a chegada do dia 1 de dezembro, o dia em que transformavas a nossa casa num refúgio natalício. Dei por mim a evitar as montras, que começam a ser enfeitadas cada vez mais cedo, antecipando a época para lá dos limites aceitáveis. Tremia só de pensar que as canções que me aqueceram durante todos estes anos, poderiam levar-me às lagrimas de cada vez que as ouvisse na rádio ou nos altifalantes de um qualquer supermercado… Jurava que ia ter vontade de hibernar até ao ano seguinte. Porém, nada disso aconteceu.
As montras já estão adornadas e eu continuo a admirar cada uma delas, tirando ideias para decorar a nossa casa. Sinto-te ao meu lado, maravilhada perante os enfeites saídos de contos de fadas: globos de neve gigantes, comboios que circulam debaixo de uma árvore, bailarinas a fazerem as vezes das bolas nos ramos verdes. E eu, mãe, vamos embora; e tu, espera, olha só aquele anjinho. E eu a sorrir, então como agora.
As músicas já se fazem ouvir por todo o lado, mas, em vez de tapar os ouvidos, dou por mim a saltitar, como tu fazias, enquanto entoavas cada uma delas, inventando as partes das letras que não sabias de cor. Anos e anos a ouvires as mesmas músicas e enganavas-te sempre na mesma parte. E eu, “and if you ever saw it, you would even say it glows”; e tu a encolheres os ombros, como que dizendo que as letras são o menos importante numa canção de Natal.
As decorações já alegram a casa e não me impedem de sorrir. Fui à arrecadação buscar a árvore, as caixas com os enfeites, as luzes, seguindo as instruções de montagem que me davas, ano após ano, nos tempos em que vivia contigo. Primeiro, tens de aspirar a árvore e passar um pano molhado em cada um dos seus ramos. Depois, enrolas as luzes de cima para baixo, junto ao tronco. Só então, podes começar a colocar as bolas, bem espalhadas por toda a superfície, não podem ficar umas em cima das outras. A parte de trás da árvore também tem de estar bonita.
Embrulhei os presentes todos com papel igual, como tu fazias, um estilo diferente a cada ano. Umas vezes, papel liso, outras vezes, de fantasia, outras ainda, papel de jornal. As fitas a condizerem com os tons escolhidos, terminando em grandes laços atados com cuidado e precisão. Os nomes desenhados em letra manuscrita em cartões alegres, dependurados com cordão dourado. Azevinho falso colado na fita. Ou uma estrela. Ou uma rena de peluche, caso o presente fosse para uma criança. Este ano escolhi sombrinhas de chocolate para os pequenos. Ficaram bonitos os embrulhos, mas não tão bonitos como os teus. E eu que achava que já tinha aprendido; e tu a dizeres que estão maravilhosos. Juro que te ouvi ainda agora.
Este ano somos menos à mesa da consoada. Somos só nós os quatro, na verdade. Tu eras a cola que unia a família e, sem ti, os meus irmãos arranjaram desculpas para não vir. Que não me querem dar trabalho, que ninguém gosta assim tanto do bacalhau, que as passagens estão caras, que a família da mulher vai fazer uma grande festa, que o marido quer passar a quadra num lugar exótico, que sem ti nada disto faz sentido. Mas eu sei que faz, mãe! Eu sei que ficarias zangada se a casa não estivesse iluminada, se eu não pusesse o meu barrete vermelho, se não houvesse um calendário do advento com um chocolate e uma história em cada janelinha. Por isso, prometo que serei eu a guardiã das tradições, mesmo que sejamos apenas quatro, ou três, ou só eu, sozinha, um dia. Enquanto puder, esta será sempre uma época feliz, porque sei que estás aqui, mãe, em cada prato que me vejo aflita para cozinhar, em cada filhós que mordisco quando passo pelo aparador da sala, em cada casinha de gengibre que tento montar.
Tu lembras-te quando fizemos a primeira, mãe? E ela se desmoronou sob o peso do açúcar glacé, demasiado líquido e quente? E tu, muito calma perante o desastre e as lágrimas que estavam prestes a soltarem-se dos nossos pequeninos olhos, a dizeres que tinha sido uma partida dos duendes e que devíamos deixar a casinha desfeita, no centro da mesa, para que o Pai Natal a visse e os pusesse de castigo. E eu com pena dos duendes, que só queriam brincar. Lembras-te?
Este é o primeiro Natal sem ti, mãe, mas eu não sinto saudades, nem a mágoa de já não te poder abraçar. Sinto apenas o teu amor e a certeza de que estás espalhada por toda a casa, tal como estas decorações excessivas. Tal como o Pai Natal, que ninguém vê, mas que todos sabem que existe. E eu, já com treze anos, ó mãe, vá lá, pára de dizer que o Pai Natal existe; e tu, é claro que existe, para quem o quiser ver.
Olhem ali, crianças! O prato das bolachas que deixámos ontem à noite está vazio! Incrível! E as minhas crianças, mamã, estás a chorar? E eu, claro que não, isto não são lágrimas, são apenas flocos de neve do Pólo Norte, que o Pai Natal deixou no meu rosto.
Tu bem me dizias, mãe, ele vem sempre.
E tu também vieste. Agora entendo.
Obrigada, mãe.

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