Inferno

«PAREM!!!», gritou ela, com os olhos em chamas. «Acabou, neste segundo!»

«Mas, foi ele que começou…» balbuciou um dos irmãos.

«Não quero ouvir nem mais uma palavra! Não quero saber quem começou, quem provocou, nada! Está percebido?».

Os pequenos assentiram, controlando as pequenas labaredas que queriam sair pelo nariz.

«Estou completamente farta de vocês! FARTA! É todos os dias a mesma coisa, sinceramente! Só guerras e gritos e raiva por todo o lado. Chega!»

Não era comum vê-la perder as estribeiras daquela maneira. Essa era a especialidade deles, soltos e endiabrados, a sussurrar ao ouvido dos Homens. A mãe, pelo contrário, era uma fogueira de várias horas, quente mas controlada e sobretudo, aconchegante. Era a rocha que envolvia o domínio e impedia que a lava que o pai vomitava se derramasse para lá das fronteiras, ou que as labaredas que eles próprios cuspiam fossem levadas pelo Vento, com quem, aliás, não gostava nada que brincassem. A mãe era o equilíbrio, embora, naquele momento, estivesse evidentemente desequilibrada. Virou-se, num gesto teatral, arrastando o manto feito das mais finas cinzas, verdadeira obra de arte em tons de prata – há que dizê-lo – e, com o queixo emproado, dirigiu-se impetuosamente à sala do trono.

«E tu, nem me faças começar! O que é que te passou pela cabeça para os deixares à solta?» vociferou, sem se importar com quem ouvisse, e não eram poucos os servos e espectros que cirandavam pelo palácio. Os demónios ficaram à escuta, escondidos na penumbra, temendo o discurso enraivecido da mãe, capaz de assustar o próprio Diabo. «Não sabes como se espalham, descontrolados? Não conheces os filhos que tens?»

«Ora, Satânia, não sejas dramática»

«Dramática? Já olhaste bem lá para cima?»

«Já, e então? Mais uma civilização que colapsa, quantas vezes já vimos isto acontecer?»

«Não desta maneira, não a esta velocidade. Eu sei que estás velho, e não te entendes com as novas tecnologias, mas tens noção do poder de disseminação das redes sociais? Como é possível tê-los deixado brincar com os algoritmos?»

«A última vez que verifiquei, os algoritmos eram inofensivos.»

«A última vez que verificaste foi há mais de dez anos! E não são só os algoritmos, é também a inteligência artificial, que cresce livre e sem regulação. Já não bastava um genocídio que ninguém quer travar, sangue derramado na Síria, Iémen, Etiópia, Sudão, Mianmar e Haiti, o aquecimento global, o Trump outra vez na Casa Branca, Talibãs a aterrorizar mulheres, multimilionários de jato privado em orgias com menores, neo-nazis a crescerem como cogumelos, incells a contaminar os jovens, comentários de ódio, homofobia e racismo, a partidarização de todo e qualquer assunto, a Fox News, a CMTV, influenciadores de maquilhagem, youtubers descerebrados, e até os Anjos em tribunal, imagine-se bem! Ainda me aparece aqui o senhor das barbas a pedir satisfações por estarmos a entrar no seu departamento.»

«Olha, se aparecer, também lhe digo das boas. O que é que ele tem estado a fazer para melhorar as coisas? Nada! Parece que desistiu. E não é de agora. Deve andar entretido noutras galáxias, é o que é.»

«Que ele não faça nada, é um problema dele e de quem o segue, agora deixar os nossos demónios brincarem sem vigilância na Terra, contaminando toda a Humanidade, é um problema nosso. Mais precisamente meu, não é? É sempre a mãe que tem de resolver tudo, acabar com os amuos, aplicar os castigos, ouvir os queixumes, arrumar o pandemónio! É que não há um minuto de descanso, fogo!»

«Calma, amorzinho, que já estás a derreter.»

«Não me digas para ter calma, ouviste? Levanta mas é o rabo desse trono velho, e vai buscar os outros, que ainda estão por lá a fazer das suas. E depressa, antes que o mundo acabe.»

«Sabes que o mundo não acaba, não sabes? Só os humanos.»

«Sei, mas afeiçoei-me a eles, o que é que queres? Uma coisa é ir matando uns quantos por dia, outra coisa é esta espiral de auto-destruição, que nos torna completamente supérfluos. Onde é que já se viu?»

«OK, mas devias saber que a culpa não é só dos demónios. A Estupidez também anda por lá, e quanto a isso, não podemos fazer nada.»

«Mais essa! Péssima companhia. Tenho de ir falar com a mãe dela imediatamente.»

«A Ignorância? Boa sorte com isso…»

«Levo daqui dez mil bibliotecas, que ela vai só ver.»

«Pois, só se for com bibliotecas, e desenhos, muitos. Oferece-lhe também uns artistas, porque só com palavras ela não vai lá.»

«Estou cansada disto. Não há um dia em que não tenha de me chatear…» suspirou Satânia, saindo tão depressa como chegara, agora com dez mil bibliotecas debaixo do braço.

«Não desanimes, amorzinho. Leva a Esperança contigo que ela é sempre útil nestas alturas.»

A custo, visto que a barriga já lhe pesava, o Diabo levantou-se do trono para ir buscar os demónios pelas orelhas. Era trabalho para várias décadas, quiçá séculos, mas tinha de ser feito. Se não, o mais certo era a mulher fugir de casa e, desordem por desordem, voltar para o ex-namorado. Da última vez que encontrara o Caos, ele estava com óptimo aspeto, os abdominais definidos, aquele ar rebelde de quem tem prazer em dar cabo de tudo. Era melhor despachar-se. E já agora, arranjar o nome do PT dele. Uns abdominais assim, naquela idade, não era só fruto da genética. Cuspiu um pouco de lava para ver se derretia a banha, sem resultado, e partiu rumo à Terra, conformado com a evidência de que teria de regressar ao ginásio o mais depressa possível. Que Inferno!

© Carlos Manuel Gonçalves

Texto escrito para a newsletter literária do Clube das Mulheres Escritoras