Beleza Artificial

Depois da era das supermodelos nos anos 90, e do advento do Photoshop nos anos 2000, as mulheres de hoje têm de aprender a lidar com manequins criadas por inteligência artificial. Marcas como a Guess, a Mango, a Reebok ou a Levi’s estão a lançar campanhas de publicidade ou catálogos em que a roupa não é vestida por humanos, mas sim digitalmente adaptada a corpos que só existem no ciberespaço.

Esta tendência tem implicações nefastas na indústria da moda, claro, retirando trabalho a inúmeros profissionais, não só as próprias manequins, como também os fotógrafos, editores de imagem, maquilhadores, stylists, cenógrafos ou cabeleireiros. Mas o que mais me preocupa é a disseminação de um ideal de beleza impossível.

A moda sempre foi feita por pessoas bonitas e com corpos quase perfeitos. Desde que existe publicidade, quem dá a cara pelas marcas ou surge nas capas das revistas é escolhido a dedo. Mesmo com ligeiras mudanças nos padrões de beleza, sempre houve uma predilecção por seres que ganharam a lotaria genética, com corpos delgados, feições simétricas, cabelos volumosos e olhos deslumbrantes. E está tudo certo. Todos nós aprendemos a lidar com os padrões perpetuados pela publicidade, mas também pelos ídolos do cinema ou da música. Só que, até aos anos 2000, esses padrões eram mais ou menos reais, visto que, descontando as luzes e a maquilhagem, os óleos de corpo e os ângulos estudados, e até uma ou outra cirurgia estética, aquelas pessoas que apareciam nas revistas, nos filmes, nos videoclips, eram de verdade.

Com a chegada do Photoshop e de outros programas de edição de imagem, as coisas foram mudando. As modelos continuaram a ser escolhidas pela sua beleza e medidas perfeitas, mas deixaram de ter marcas da sua humanidade. Sinais, derrames, celulite, linhas de expressão desapareceram por completo. Aliás, nos anos em que trabalhei em publicidade, assisti à transformação digital completa de pessoas, incluindo aumento de seios e do comprimento das pernas, ou afinação de narizes e de cinturas. Assisti inclusive à criação de imagens feitas a partir de montagens de várias fotografias, porque numa o corpo estava na posição certa, mas na outra o sorriso estava mais natural. Quanto mais estas imagens manipuladas iam sendo a norma, mais cresciam as taxas de anorexia e bulimia entre adolescentes.

Começou, então, um movimento pela beleza real e pela educação das meninas, mais sujeitas à pressão da imagem, para que soubessem que os padrões de beleza preconizados pelos diferentes meios não eram saudáveis, e que as modelos e actrizes também tinham celulite e sinais e papos debaixo dos olhos. Tentámos mostrar às raparigas (mas também aos rapazes) que todos os corpos têm a sua beleza, e que os padrões que nos são impostos são fabricados por indústrias que nos querem vender cremes e roupas e os mais variados objectos. E é bem mais fácil vender o que quer que seja a pessoas que estão inseguras ou insatisfeitas com a sua imagem. Penso que alcançámos progressos importantes. Começámos, inclusive, a ver nos desfiles e nos cartazes publicitários pessoas de diferentes tamanhos, raças e etnias, algumas carecas, outras tatuadas, algumas com sardas outras com vitiligo. Uma verdadeira celebração da diversidade.

Até que surgiram as influencers e as redes sociais, Kardashians e que tais, combinação explosiva de futilidade e de manipulação, fazendo com que, nos últimos anos, muitas das conquistas alcançadas tivessem ido por água abaixo. O mundo sucumbiu à ditadura da imagem e à consequente normalização do uso do Botox, do silicone e dos mais diversos procedimentos de emagrecimento e rejuvenescimento, numa busca insana pela juventude eterna. Este ideal, que nada tem que ver com envelhecer bem ou ter cuidados de saúde, é a negação absoluta do envelhecimento. Em vez de aceitarmos a passagem do tempo como uma bênção, caminhamos para uma sociedade em que é proibido parecer ter mais de trinta anos. Vemos crianças a usarem séruns, raparigas a fazer preenchimentos, e mulheres maduras desfiguradas, a achar o máximo serem confundidas com as filhas. Incluindo aquelas incrivelmente bonitas, ícones de beleza de outros tempos, que não aceitam as rugas, a flacidez ou os quilos a mais. Entrámos na era do anti-envelhecer, mas também da gordofobia.

Como se não bastasse toda esta insanidade, que só serve para perpetuar inseguranças e convencer-nos de que só a juventude é bela e só um corpo escultural é atraente, chegam as modelos criadas por inteligência artificial, mulheres (e homens!) geradas por computador para responder aos mais exigentes padrões e medidas, alimentando a espiral da ínvia busca pela perfeição. Modelos usados em publicidade, mas também nas redes sociais e, em breve, no cinema, a quem tudo assenta como uma luva, incluindo ordens e directrizes.

Preocupa-me o desemprego a que muitas pessoas destas e de outras indústrias estão condenadas, mas preocupa-me muito mais a normalização de uma estética que nenhum ser humano conseguirá alcançar. Preocupa-me que os meus filhos venham a viver numa insatisfação permanente com a sua imagem ou em busca de parceiros que correspondam a um padrão que não é nem humano nem alcançável. E tudo isto para que as marcas poupem uns trocos e não tenham de lidar com os erros e imperfeições dos seres humanos.