Antigamente, as crianças não brincavam.
Alice lembra-se bem desse tempo, em que a mãe a acordava ainda noite para que tomasse conta dos irmãos enquanto ia para a jornada. Com dois, quatro e seis anos, eram os bonecos que nunca teve, aos quais mudava as fraldas e dava pão duro enquanto a mãe não regressasse, ai dela que mexesse no lume, não importava o tamanho da fome. Alice tinha apenas nove.
Nos dias de sol, corriam pelo quintal, perseguindo as galinhas, construindo figuras de lama e mercearias imaginárias com latas de conserva vazias. Não sem antes terem arrumado a casa e apanhado a roupa que a mãe deixara estendida no varal. Alice em cima de um banco, os mais pequenos a apanhar as peças que lhes atirava e a colocar tudo num cesto de verga, que depois arrastavam para junto da mesa de jantar. Nos dias de chuva, contava-lhes histórias de lobos famintos que comiam criancinhas ou homens maus que as levavam num saco. Nenhuma tinha um final feliz, porque por aquelas bandas ninguém sabia muito bem o que era isso da felicidade.
Ainda assim, Alice sentia-se afortunada, pois tomar conta dos irmãos sempre era melhor do que o destino de muitas crianças vizinhas, que iam com os pais para o campo de sol a sol, a pele tisnada, as mãos calejadas, as costas doridas. Gostaria de ter ido à escola, em vez de ser dona-de-casa e mãe pequenina, mas isso, claro, era privilégio de poucos. O irmão a seguir a ela pôde ir porque era rapaz, e, generoso, partilhava tudo o que aprendia com ela. Alice ansiava pelo seu regresso a cada dia, fazendo perguntas e descobrindo o sentido das coisas. Um dia, o irmão até lhe trouxe um livro que a professora lhe emprestara. Foi amor à primeira vista. A partir de então, Alice começou a ler tudo o que conseguia agarrar, até os jornais com vários dias. O filho do dono do café, que gostava dela, guardava-lhe sempre um exemplar, antes que o pai o usasse para forrar as latas de lixo e as gaiolas. A professora soube do caso e deixou-a fazer o exame da quarta classe com o irmão. Alice recebeu o diploma sem ter posto um pé numa sala de aula.
A mãe achava que tal conquista não lhe serviria de muito, já que o seu destino de cuidadora estava traçado. Porém, através dos livros e dos jornais, Alice conheceu o mundo imenso que existia para lá da aldeia. E tal conhecimento acabou por lhe valer, sim senhor, quando aos catorze anos foi mandada para a cidade como criada de servir. Assim que a Madame percebeu que sabia ler e escrever, começou a dar-lhe funções mais importantes. Em vez de esfregar roupa no tanque, atendia o telefone e escrevia os recados, com a letra bem desenhada e firme de quem não se amedronta com as palavras. Em vez de encerar o chão, cuidava dos meninos, espantando-se com a quantidade de brinquedos que tinham, mas sobretudo com os sorrisos de quem nunca teve medo, nem fome, nem deveres de gente grande. Afinal, havia alguns lugares onde as crianças podiam ser crianças.
Por altura do Natal, regressava à terra com brinquedos muito usados que os meninos da casa já não queriam, mas que faziam as delícias dos irmãos mais novos e da miudagem da vizinhança. Uma vez levou uma boneca muito linda, que a irmã caçula abraçou com paixão. Dois dias depois quis dar-lhe banho e a boneca, que era de cartão, desfez-se toda na pequena bacia de latão. Alice ria-se agora com essa memória, mas na altura foi um drama, que só acabou quando a mãe deu dois tabefes à miúda por estar a chorar e outros dois a Alice por ter trazido a boneca. Dizia que estava a habituar mal as crianças, que depois se tornavam perguiçosas e se distraiam das suas obrigações. Quando fez dezoito anos, o patrão mandou-a para o escritório dele para ser telefonista. Os meninos já estavam crescidos, e ele não queria que ela desperdiçasse a inteligência nas lides domésticas. Tamanha responsabilidae, fez com que Alice deixasse de ter vagar para ir a casa pelo Natal, mas juntava sempre algum dinheiro durante o ano para poder enviar brinquedos ou chocolates para a aldeia, imaginando a felicidade a chegar àquelas bandas, por fim, nem que fosse durante um dia.
Talvez por tudo isto, já adulta, Alice gostasse tanto de se sentar nos bancos dos jardins, sobretudo ao final do dia, quando estes eram invadidos por gaiatos acabados de sair da escola, mas ainda cheios de energia para gastar. A algazarra feliz e despeocupada era música para os seus ouvidos habituados a lamentos. Quando os jardins começaram a ter baloiços e escorregas, pareciam pequenos parques de diversões de onde ninguém queria sair. Durante muitos anos, foi ela a levar os próprios netos, sempre atenta e pronta para acudir aos joelhos esfolados, às boladas na testa, aos espinhos no dedo.
Os netos cresceram, partiram, mas o hábito de se sentar nos bancos dos jardins não esvaneceu. Ainda hoje faz questão de visitar todos os dias o que fica ao fundo da sua rua, contrariando as pernas cansadas. A algazarra, no entanto, já não se ouve. Os baloiços, abandonados, são agora poiso para pequenos pardais. Os escorregas brilham imponentes, mas vazios. Não há boladas, nem arranhões. Não há birras, nem gargalhadas. As poucas crianças que aparecem por ali, depressa se cansam, preferindo ficar curvadas nos bancos, a olhar para um objecto hipnotizador que as torna alheias a tudo.
Antigamente, as crianças não brincavam, lembra Alice. Mas hoje também não.
(texto publicado na Revista de Natal do Jornal do Fundão, 19 de dezembro 2024)

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