Em residência literária

Habituei-me a escrever quando posso, não quando quero. Escrevi o meu primeiro livro nos tempo livres de uma carreira a tempo inteiro na publicidade. O segundo foi terminado em vésperas de dar à luz o meu primeiro filho, os outros todos sempre conciliando trabalho e maternidade, num delicado e nem sempre eficaz equilíbrio entre a responsabilidade com que encaro qualquer função l, a vontade desmedida de dar vida às personagens que vivem na minha cabeça e a missão de ser uma mãe presente e atenciosa.

Habituei-me a escrever quando posso, mesmo nos últimos anos, já abandonada a publicidade, dona de quase todo o meu tempo, ainda assim dividido com um pequeno negócio que paga as contas que os livros não pagam, largando um parágrafo a meio porque são horas de ir buscar os miúdos, ir ao supermercado, fazer o jantar.

Habituei-me a escrever quando posso e a sentir uma certa inveja dos escritores que partem para residências literárias ou dizem que se fecharam durante um, dois, três meses em casa sem fazer mais nada que não escrever. Já para não falar dos escritores estrangeiros, que se dedicam apenas à escrita porque vivem em países onde as vendas de livros o permitem.

Não sou a única. A maioria dos escritores portugueses não conseguem dedicar-se apenas à escrita, que ainda é vista como um hobby e remunerado como tal.

Quando li o livro de Virgínia Woolf “Um quarto só seu” percebi que a questão já tinha sido levantada há cem anos. Nesse livro/ ensaio a autora afirma que as mulheres só poderiam produzir obras em quantidade e qualidade idêntica à dos homens quando tivessem um quarto só seu e algum dinheiro próprio. Até lá, teriam de dividir o tempo da escrita com todos os outros afazeres, principalmente domésticos, e contar com a boa vontade do homem que lhe fornecesse um tecto, fosse o marido, o pai ou o irmão. Bem sabemos que já não é tanto assim, mas ainda são as mulheres que fazem a maioria do trabalho em casa e que tratam das crianças. Questões de género à parte, o ponto é que, sejam mulheres ou homens, os escritores portugueses ainda estão no patamar que os ingleses estavam há cem anos, dependendo das escassíssimas residências literárias para produzirem o seu trabalho sem interrupções, residências essas às quais poucos podem concorrer porque, lá está, têm outros compromissos.

Habituei-me a escrever quando posso e agora tenho a sorte de poder estar numa casa com vista para o mar a terminar o meu próximo livro. A sorte de ter uma casa cedida pela minha família (já que o estado, os municípios e as instituições públicas não o fazem) e sobretudo a sorte de ter um marido incrível, que me obrigou a fazer as malas e partir. Parti sem culpa por deixar os meus filhos, que já são suficientemente crescidos para saberem que serei uma mãe mais paciente quando o livro estiver terminado. Parti sem medo de estar a falhar. Pela primeira vez na vida vou ter de me habituar, mesmo que seja apenas durante umas semanas, a ter todo o meu tempo para escrever num quarto só meu.